Dentro de três semanas ocorrerá rara abertura das portas da montanha Platô, em Spitsbergen, ilha no arquipélago ártico de Svalbard (Noruega). O Cofre de Sementes receberá mais dez grandes lotes de variedades de alimentos decisivos para a sobrevivência humana –até aqui, ao menos.
Entre dezenas de caixas contendo sementes seladas com 5% de umidade para armazenamento a 18ºC negativos estarão, pela primeira vez, algumas do Sudão. Com 11 milhões de refugiados, o árido país africano enfrenta há séculos conflitos e fomes, e em 2024 sofreu também com ondas de calor e até enchentes.
Há algo de simbólico nessa remessa. A instalação foi inaugurada em 2008 para preservar cultivares com diversidade genética suficiente para garantir a continuidade da agricultura no futuro ameaçado por mudanças do clima, como variedades de trigo, arroz ou batata resistentes a secas.
Na câmara fria escavada em rocha viva encontram-se mais de 1,3 milhão de amostras de sementes, vindas de quase todos os países do mundo por iniciativa da organização Crop Trust. Serve como um seguro: em caso de desastre, climático, bélico ou agrícola, pode-se sacar uma amostra para regenerar alimentos cruciais.
Assim como o Sudão, Spitsbergen não está imune à crise do clima. O Cofre de Sementes custou US$ 9 milhões, mas dez anos depois passou por reforma de US$ 13 milhões para reverter infiltração de água no túnel de acesso, pois a temperatura sobe até no coração da montanha num dos lugares mais frios do planeta.
Em fevereiro de 2018 estive em Svalbard com o fotógrafo Lalo de Almeida para testemunhar outra abertura do cofre, como parte da série de reportagens Crise do Clima. Era para fazer 15ºC negativos no inverno do paralelo 78ºN, mas os termômetros marcavam 3ºC positivos –e choveu, quando deveria nevar.
Svalbard já foi considerado uma das áreas mais seguras do mundo. Porém, com as rotas marítimas do Ártico reabertas pelo aquecimento global, a região se torna estratégica para países belicosos como Estados Unidos e Rússia.
Nada se encontra de fato seguro nesta Terra, como sabem os pobres do Sudão, do Iêmen ou de Gaza, e doravante também os ricaços de Los Angeles. O mundo já presenciou guerras e fomes bem menos localizadas, como as duas grandes guerras do século 20.
Entre 1941 e 1944, o Birô de Botânica Aplicada e Melhoramento de Plantas de Leningrado viu a sobrevivência de seus funcionários ameaçada pelo cerco à cidade montado pelo exército nazista. O bloqueio durou quase 900 dias e matou de fome coisa de 800 mil pessoas.
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O instituto havia sido criado no século 19, ironicamente, por um botânico alemão, Eduard August von Regel. Depois passou por grande expansão pelas mãos de Nikolai Vavilov (perseguido pelo biólogo estalinista Trofim Lysenko, outra história trágica).
A instituição tinha finalidade similar à do Cofre de Sementes: proteger variedades agrícolas para o futuro. Tinha, na época do cerco, cerca de 250 mil amostras, com destaque para cultivares de batatas.
Vavilov morreu de inanição em 1943. Mesmo destino teve quase toda a equipe do birô, mas ninguém fez o que pareceria lógico naquela situação: germinar as sementes e tubérculos para matar a própria fome.
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noticia por : UOL