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Cuiaba - MT / 3 de fevereiro de 2025 - 0:00

O que os pais entendem errado sobre os 'marcos' da infância

Uma rápida busca nas redes sociais pelos perfis especializados na criação de filhos irá mostrar os cartões que indicam os marcos do desenvolvimento infantil. São cartões em tons pastéis que indicam com que idade o bebê tentou engatinhar, sentar ou andar pela primeira vez.

Os marcos da infância passaram a ser motivo de comemoração —ou de preocupação— e não só na internet.

Uma pesquisa recente concluiu que cerca de seis em cada 10 pais nos Estados Unidos se preocupam com os marcos de desenvolvimento dos seus bebês. Mas poucos deles sabem quais são eles e quando eles devem acontecer.

Outros pais podem tomar o caminho oposto e prestar pouca atenção na idade em que seus bebês adquirem novas habilidades. Eles confiam que a criança irá se desenvolver no seu próprio ritmo.

Tudo isso levanta várias questões. A primeira: qual é a importância dos marcos do desenvolvimento infantil —e que uso os pais devem fazer deles?

Os marcos da infância são uma ferramenta fundamental que pode nos ajudar a identificar mais cedo quando algo está errado? Ou são apenas mais uma forma de competição entre os pais?

As respostas dependem, em parte, do que entendemos exatamente como marcos do desenvolvimento infantil.

Em primeiro lugar, os motivos que levam os profissionais de saúde a considerar importantes os marcos de infância podem ser diferentes das visões dos pais.

“Muito concretamente falando, o marco é a definição de um comportamento que os pais afirmam que a criança pode fazer ou não”, segundo o professor de pesquisa Chris Sheldrick, da Universidade de Boston, nos Estados Unidos. Ele estuda os protocolos de análise pediátrica.

Sheldrick destaca a própria origem do termo e recorre ao atletismo.

Se você disputar uma corrida de 10 mil metros, por exemplo, pode haver um marcador na altura dos 5 mil. Por definição, no início da corrida, ninguém havia passado por ali. Mas, no final da disputa, todos terão ultrapassado aquele marco.

Comparar o progresso de um bebê específico ao longo desses marcos pode ajudar os profissionais de saúde a avaliar seu desenvolvimento. Mas, como os pais conhecem melhor seus filhos, os especialistas afirmam que talvez seja uma boa ideia fazer com que eles próprios tenham uma ideia aproximada de quando os bebês costumam fazer as coisas pela primeira vez.

Neste ponto, é preciso destacar que existem sérias ressalvas quanto à noção de desenvolvimento “normal”, como veremos mais adiante.

Personalidade ou sinal de patologia?

Alguns pais mantêm uma visão muito despreocupada sobre os marcos de desenvolvimento infantil. Eles consideram, por exemplo, que seu filho ainda não tentou engatinhar ou andar simplesmente porque sua personalidade é mais tranquila.

Mas os profissionais de saúde defendem que estes pais podem estar deixando passar outros motivos.

Os marcos da infância podem servir para identificar problemas e oferecer o apoio certo de forma precoce.

“É claro que existem crianças com personalidades que influenciam o que elas estão dispostas a fazer. Por isso, elas podem apresentar tendência a este desenvolvimento mais atrasado”, explica a terapeuta física pediátrica Kaitlin Rickerd, de Nova York, nos Estados Unidos.

“Mas, quando começa a sair das faixas esperadas, normalmente existe alguma coisa que precisa ser verificada. Existe um motivo, não importa se o atraso for grande ou pequeno.”

Atrasos de desenvolvimento são comuns e uma em cada seis crianças passa por eles nos Estados Unidos.

E um atraso isolado não caracteriza uma condição médica. Um estudo que envolveu 404 crianças com 18 meses de idade que não andavam de forma independente, por exemplo, concluiu que dois terços delas não apresentavam patologia subjacente.

Mas, quando existe um problema, é fundamental intervir o mais cedo possível. Atrasos da fala, por exemplo, podem sinalizar autismo. E andar mais tarde pode ser um sintoma de paralisia cerebral.

Identificar precocemente essas diferenças pode ajudar os pais a compreender e auxiliar no desenvolvimento particular dos seus filhos.

“Sabemos que, nos primeiros três anos de vida, o volume do crescimento do cérebro, a quantidade de aprendizado e de marcos do desenvolvimento atingidos por uma criança é enorme —o que também significa que este é o melhor período para intervir e fazer a diferença”, explica Rickerd.

Mas os marcos da infância são mais do que um instrumento para identificar questões subjacentes, segundo ela. Depois de trabalhar em pediatria com crianças maiores, ela observou que deixar de dominar uma técnica pode causar um efeito cascata.

A eventual dificuldade para segurar o lápis e escrever, por exemplo, pode estar relacionada à fraqueza dos arcos das mãos. Ela pode ter se desenvolvido porque a criança não segurou peso quando bebê, seja engatinhando ou brincando de barriga para baixo, explica ela.

Definindo padrões

Esta visão profissional dos marcos do desenvolvimento infantil, principalmente como instrumento de avaliação, é diferente da forma como alguns pais tratam desses marcos no dia a dia: como um indicador que prevê, às vezes de forma competitiva, a capacidade ou o talento das crianças.

De fato, existem evidências que demonstram que atingir certos marcos da infância mais cedo pode indicar inteligência superior ou que a criança irá atingir maior grau de educação no futuro. Mas Sheldrick explica que isso é válido entre populações inteiras, não para crianças específicas.

Se existir uma chance em um milhão para que uma criança com desenvolvimento normal se torne jogador de futebol profissional, por exemplo, um bebê que ande mais cedo talvez tivesse uma chance em 900 mil, segundo ele.

Forçar as crianças a adiantar seus marcos de desenvolvimento também pode ser contraproducente. Existem evidências, por exemplo, de que o uso frequente de andadores e saltadores pode prejudicar o desenvolvimento motor dos bebês.

Sheldrick destaca que a própria metáfora da corrida com marcadores não se encaixa exatamente na complexa realidade do desenvolvimento humano.

Quando você assiste a uma corrida, você sabe quais corredores estão a exatamente 1 km da marca de 5 km. Você pode estimar quando eles irão chegar lá.

Quando eles chegarem, você sabe exatamente o momento em que isso aconteceu. E todos os corredores que terminarem a corrida irão atingir aquela marca em algum momento.

Mas as marcas de desenvolvimento infantil não oferecem esta clareza, nem são um conceito universal. Sua definição e interpretação podem sofrer variações consideráveis entre as diferentes culturas —e até entre uma família e outra.

“Um bom exemplo é ‘seu filho pode andar?'”, explica Sheldrick. “O que você quer dizer com ‘andar’? Seu filho consegue andar 1 km? Ele pode andar até o poço e voltar? Ele deu alguns passos?”

Esta confusão explica por que novas ferramentas de avaliação tentam usar expressões mais específicas, como os marcos atualizados, definidos recentemente pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) e pela Academia Americana de Pediatras (AAP).

O que deixa tudo ainda mais complicado é o fato de que o desenvolvimento das crianças é muito rápido.

Uma criança que não anda aos 18 meses pode começar a correr aos 19. Mas, se a criança só for examinada aos 18 meses, ela pode ser identificada como não estar seguindo os “padrões”.

E existe a questão da avaliação. Como decidir quando algo “deve” acontecer? Com base em quais dados?

A recente mudança dos marcos de desenvolvimento dos CDC e da AAP destacou muitas destas questões.

Como fizeram muitas outras listas oficiais de marcos da infância, os dois organismos se basearam, por quase 20 anos, no percentil 50 —ou seja, se 50% das crianças pudessem fazer algo com uma certa idade, aquela era a idade para aquele marco de desenvolvimento.

Com isso, os outros 50% dos cuidadores poderiam ficar preocupados sem necessidade. E também era um incentivo para que os pediatras “aguardassem para ver” o que aconteceria com as crianças que não atingissem um certo marco da infância —o que, às vezes, era prejudicial.

“Os pais de crianças com deficiências relatavam atrasos na sua identificação porque eram orientados a esperar, pois as crianças se desenvolvem de forma diferente e algumas levam mais tempo do que outras”, escreveram os pesquisadores que participaram das alterações.

Por tudo isso, no começo de 2022, os CDCs alteraram seus marcos de desenvolvimento para o percentil 75. Mas, agora, o risco é o contrário: com as idades postergadas, as famílias podem demorar mais para observar o atraso das crianças.

Surge, então, a questão sobre a origem dessas expectativas.

Diferenças culturais

Historicamente, existem relativamente poucos dados sobre grandes populações de crianças e seus marcos de desenvolvimento.

No século 20, o psicólogo americano Arnold Gesell (1880-1961) foi o primeiro a quantificar os marcos motores da infância. Ele observou bebês de famílias brancas de classe média de New Haven, no Estado americano de Connecticut, e descreveu seu comportamento, movimentos e expressões ao longo do tempo.

Desde então, grande parte das evidências sobre os marcos da infância se baseou na população ocidental. Mas o desenvolvimento inicial pode ter aparência muito diferente em outras culturas.

No Tajiquistão, por exemplo, é comum enfaixar os bebês até os dois anos de idade e deixá-los no berço, mesmo estando acordados. As crianças do país, de fato, desenvolvem habilidades motoras mais tarde que no Ocidente, mas aparentemente não demonstram efeitos prejudiciais de longo prazo.

Já na tribo Efe, na República Democrática do Congo, bebês de 11 meses já usam facões para cortar frutas. É desnecessário dizer que este marco não está na lista dos CDC e que ninguém se preocupa em saber se os bebês americanos conseguem a mesma façanha.

Tudo isso, sem falar que as expectativas dos pais também variam. Um estudo mais antigo, de 1997, por exemplo, concluiu que os pais europeus e americanos acreditavam que as crianças deveriam se alimentar sozinhas com 13,7 meses, mas os pais de Porto Rico só esperavam este comportamento com 19 meses.

Funcionários do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) vivenciaram recentemente estas complexidades culturais em primeira mão.

Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas define que todas as crianças devem estar em dia com seu desenvolvimento. Para isso, o Unicef precisou desenvolver um instrumento que todos os países pudessem adotar.

A questão, segundo a consultora sênior do Unicef, Claudia Cappa, foi: “Podemos criar algo que seja equivalente aos padrões de crescimento? Podemos chegar a uma criança ‘normal’?”

O trabalho levou cinco anos e reuniu 200 escritórios nacionais de estatísticas, pediatras e especialistas no desenvolvimento infantil. E um dos maiores desafios foi como tornar estas questões universais.

Na zona rural do México, por exemplo, a equipe do Unicef descobriu que as pessoas poderiam não entender se eles perguntassem se uma criança consegue empilhar blocos. Eles tinham mais sorte perguntando se a criança podia empilhar lenha.

Em um estudo destacando a necessidade de uma perspectiva multicultural para a questão, os pesquisadores criticaram a visão convencional dos marcos de desenvolvimento.

“Os marcos motores da infância são um entrave para a criação de uma abordagem integral do desenvolvimento infantil”, escreveram eles. “Os marcos motores são apenas uma percepção do que é uma habilidade importante; são convenções culturais, não conceitos universais.”

Atualmente, muitos especialistas no desenvolvimento infantil estão conscientes destas limitações e tentam corrigi-las. A lista atualizada dos CDCs, por exemplo, utiliza fontes como um estudo com cerca de 5 mil crianças da Argentina, Índia, África do Sul e Turquia.

Mas a questão permanece: quantos dados e quantas culturas precisam estar representadas para que uma lista de marcos do desenvolvimento seja realmente “universal”?

E, mais do que isso, seria até mesmo possível chegar a esta conclusão?

Para os pais, talvez valha a pena relembrar que os marcos da infância devem ser úteis, não motivos de ansiedade.

Para Sheldrick, “os marcos de desenvolvimento são importantes. Vale a pena prestar atenção neles.”

“Se você notar alguma coisa preocupante, você deve verificar. Mas não se desespere.”

Afinal, a vida é “longa e complicada”. E é improvável que ela seja definida pelo fato de você andar aos 18 ou aos 20 meses de idade.

noticia por : UOL

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