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Cuiaba - MT / 10 de março de 2025 - 6:49

Comandante da Marinha Mercante lutou contra solidão e síndrome de impostora

Há momentos em que a solidão e a responsabilidade pesam sobre Daisy Lima da Silva, 45. São 15 dias (ou mais, a depender de atrasos) longe de casa, como responsável pela tripulação do Pedro Álvares Cabral, navio que pode levar 3.800 TEUs (cada TEU representa um contêiner de 20 pés). A carga a bordo é sempre milionária.

Integrante da terceira turma de oficiais de Marinha Mercante formada no Brasil, ela é a primeira mulher a comandar um navio de cabotagem da Aliança Navegação.

Na função, ela é o preposto do armador, o dono da embarcação. O que ela decide é a palavra final.

“É uma função de momentos solitários. Minha decisão é soberana quanto à segurança da propriedade, ao meio ambiente e à preservação de vidas. Isso pode ir de encontro à questão comercial, por exemplo. Mas como estamos em equipe, um apoia o outro tanto, nas tarefas profissionais quanto nas amizades que fazemos no percurso.”

Em 22 anos como oficial de Marinha, não era raro, afirma, ser tomada pela síndrome de impostora (problema que afeta especialmente mulheres e leva a pessoa a achar que é uma fraude, não merecedora do próprio sucesso). Daisy sempre foi uma das poucas mulheres em um ambiente masculino. Logo, aquele não poderia ser seu lugar.

“Entrei muito jovem e sentia haver um holofote gigante sobre mim. Quase sempre eu era a única mulher a bordo. Com o tempo, a gente passa a enxergar que qualquer tipo de preconceito ou visão que nos desqualifica como profissional apenas por sermos mulheres não era problema meu e sim, de quem tem esse olhar”, afirma.

Mas o sentimento de ser um peixe fora d’água durou até o momento em que chegou a comandante. Ela conta o tempo na função pelos dias em viagem. Até o momento da entrevista para a Folha, eram 1.796. Quase cinco anos embarcada.

“Percebo que possuía uma facilidade grande para aguentar a pressão natural da profissão. Realmente ninguém me cobrava mais do que eu mesma”, diz.

Ela prestou concurso na Marinha Mercante, em 2003, porque desejava testar seus conhecimentos. Aprovada como 2ª Oficial de Náutica, pensou em ficar na profissão por pouco tempo, apenas para fazer um pé-de-meia. Ela via a carreira como algo sem maiores pretensões. Passar dias seguidos embarcada nunca tinha sido seu planejamento de vida.

Sua família não tinha qualquer ligação com o mundo marítimo. O pai era feirante, e a mãe, auxiliar em serviços gerais. Eles estranharam a escolha da filha, mas aprovaram. Era uma forma de a jovem de 23 anos passar a ter alguma disciplina.

“A minha mãe não imaginava o quão distantes fisicamente estaríamos”, diz.

Daisy se deu conta do quão longe havia chegado em 2013, na China. Estava lá para levar ao Brasil o recém-construído Pedro Álvares Cabral, o navio que comanda até hoje.

Ela tem outras quatro mulheres na sua equipe. Na Aliança, são 44 em todas as embarcações, divididas entre comandante, imediatas, 1ª e 2ª oficiais de náutica, chefe de máquinas, 2ª oficial de máquinas, marinheira de máquinas, praticante de máquinas, auxiliares de saúde e cozinheiras.

Parte do conglomerado da Maersk, a empresa tem meta de chegar a 40% de mulheres de cargos de liderança neste ano. Hoje são 34%.

Pesquisa da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) de 2023 mostrou que 17% das vagas no setor aquaviário brasileiro eram ocupadas por mulheres. Na navegação, 23% dos cargos de gerência são ocupados por elas, mas o número sobe a 34% nas companhias de cabotagem.

O marido de Daisy também é comandante na Aliança. “Meu casamento foi uma das poucas coisas que me fizeram questionar a continuação [da carreira] no mar. Ele entende bem a dinâmica das nossas carreiras, é entusiasta da minha vida profissional e se empolga até mais do que eu com as minhas conquistas. No começo, foi difícil, mas com o tempo, fomos alcançando maturidade e sabedoria. A mulher, assim como o homem, necessita de realização profissional”, afirma.

Por decisão deles, não tiveram filhos.

“O peso da responsabilidade nunca vai embora, mesmo quando nos acostumamos. Mesmo na época em que cogitava parar, não deixava de evoluir. Eu via muito valor nisso [que fazia] e quanto maior o cargo, maior a responsabilidade. Quando eu estou embarcada, durmo e acordo com a consciência de que tenho em minhas mãos cargas preciosas: o bem-estar da tripulação e cargas que valem milhões de reais.”

Daisy hoje usa a palavra “engraçado” para definir a lembrança dos colegas que pediam que ela desistisse, alegando que o grau de exigência física seria elevado demais.

“É preciso saber lidar com as pessoas, especialmente as que ainda estão presas a preconceitos.”

noticia por : UOL

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