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Cuiaba - MT / 18 de março de 2025 - 19:10

Como a Europa se beneficiou com o fim da Guerra Fria — e por que agora está se rearmando

O fim da Guerra Fria significou para os governos europeus a liberação de grandes recursos que eram reservados à defesa, e passaram a ser destinados ao desenvolvimento e gastos sociais. “Baixamos a guarda. Reduzimos nossos gastos com defesa para menos da metade. Achamos que estávamos colhendo os dividendos da paz. Mas, na verdade, tínhamos apenas um déficit de segurança. O tempo de ilusões acabou.”
Com estas palavras, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fez um apelo para que o velho continente aumente os gastos com defesa para se rearmar de forma rápida e robusta.
Em um discurso proferido em 11 de março perante o Parlamento Europeu, ela reconheceu que a ordem da segurança europeia estava sendo abalada — e que as ilusões sobre as quais ela se baseava haviam ruído.
“A Europa é convocada a assumir um maior controle da sua própria defesa, não em um futuro distante, mas hoje. Não com passos graduais, mas com a coragem que a situação exige. Precisamos fortalecer a defesa europeia, e precisamos fazer isso agora”, afirmou.
Por trás desta necessidade de mudança está, em primeiro lugar, a invasão russa da Ucrânia que começou em 2022, e foi um grande choque para o continente.
A isso se somou, mais recentemente, a mudança na política dos EUA desde o início do segundo mandato do presidente americano, Donald Trump, cujas palavras e ações colocaram em xeque até que ponto Washington continua a apoiar seus tradicionais aliados transatlânticos em relação a Moscou.
Foi esta mudança que conferiu mais urgência aos planos de rearmamento sobre os quais os governos europeus têm negociado e deliberado nas últimas semanas.
Em uma mensagem televisionada, o presidente francês, Emmanuel Macron, resumiu a situação nos seguintes termos: “Mantemos nosso compromisso com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e nossa cooperação com os Estados Unidos, mas precisamos fazer mais: precisamos aumentar nossa independência em termos de segurança e defesa”.
“O futuro da Europa não pode ser decidido em Washington ou Moscou. E, sim, a ameaça voltou para o Leste, e a inocência, por assim dizer, dos últimos 30 anos, desde a queda do Muro de Berlim, é coisa do passado”, acrescentou.
Macron também se ofereceu para compartilhar o chamado “guarda-chuva de segurança nuclear” da França — sua capacidade de dissuasão nuclear — com seus parceiros europeus.
Sua referência à necessidade de a Europa aumentar a sua “independência” dos Estados Unidos aponta para um problema crítico: a força militar da Otan e suas capacidades operacionais e de inteligência dependem fortemente dos EUA, sem o qual os países europeus enfrentariam dificuldades para apoiar a defesa da Ucrânia contra a Rússia e até mesmo proteger os países membros da Otan e da União Europeia.
Mas, afinal, como surgiu esta dependência europeia na área de segurança? Parte da resposta está em um aspecto mencionado por Von der Leyen: os chamados “dividendos da paz”.
O impacto econômico do fim da Guerra Fria
Na década de 1980, nos últimos anos da Guerra Fria, muitos líderes da Europa e da América do Norte começaram a falar sobre como o fim do confronto entre Leste e Oeste poderia trazer a paz e o início de uma era de maior prosperidade.
Esta era uma grande oportunidade para os países europeus que, durante quatro décadas, viveram sob o medo de serem palco de uma nova guerra mundial resultante do confronto entre o bloco comunista, liderado pela União Soviética, e o bloco capitalista, liderado pelos EUA.
Para se proteger deste possível confronto — que nunca se concretizou —, os países europeus destinaram muitos recursos para gastos militares, não só para terem a capacidade de se defender, mas também para dissuadir qualquer possível agressão.
Esta estratégia exigia alocar uma parte significativa dos fundos nacionais para a defesa.
Em 1990, os governos da Bélgica, Espanha e Itália gastaram 4% de seus orçamentos em defesa; a Alemanha, quase 5%; enquanto a França e o Reino Unido destinaram 7% e 10%, respectivamente, de acordo com um artigo dos pesquisadores Florian Dorn, Niklas Potrafke e Marcel Schlepper, publicado em 2024 pelo Instituto Ifo, um renomado centro de estudos alemão, e pelo Instituto Leibniz de Pesquisa Econômica da Universidade de Munique, na Alemanha.
Assim, os “dividendos da paz” — termo popularizado por George H. W. Bush e Margaret Thatcher no início da década de 1990 — foram concebidos como os ganhos em crescimento econômico e bem-estar social que poderiam ser derivados da redução dos gastos militares e da realocação destes recursos para áreas como saúde, educação e infraestrutura pública.
Em artigo publicado em 2015, o economista Erik Berglof, que atualmente preside o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, destacou que os benefícios econômicos do fim da Guerra Fria foram muito além dos cortes nos gastos com defesa.
“Os fluxos comerciais e de investimento se normalizaram, e um sistema econômico terrivelmente esbanjador e ambientalmente destrutivo foi substituído por outro que, embora longe de ser perfeito, é muito mais eficiente em termos de recursos e menos desastroso para o ambiente. Atribuir um valor econômico às melhorias nos direitos humanos, como a liberdade de expressão e o direito de viajar, é muito mais difícil, mas, se forem devidamente calculados, é provável que estes benefícios para o bem-estar social geral sejam ainda maiores”, ele observou.
De qualquer forma, o cálculo do impacto econômico dos dividendos da paz e até mesmo a sua própria existência tem sido tema de debate entre os especialistas devido, entre outras coisas, ao fato de não ter havido uma transferência explícita dos recursos economizados na defesa para outras áreas de gastos públicos.
Ao mesmo tempo, em alguns casos, os governos manifestaram preferência pela simples redução dos gastos fiscais.
Esta foi, por exemplo, a posição do então presidente dos EUA, George H.W. Bush.
“Declara-se um dividendo quando se obtém lucro, e nosso governo opera com um déficit enorme. Portanto, aqueles que dizem que precisamos pegar o dinheiro deste acordo e gastá-lo em algum projeto federal, devem entender que o povo americano quer resolver este déficit, e que a economia cresça”, disse ele em junho de 1992, após uma cúpula histórica com o então presidente russo, Boris Yeltsin, na qual eles assinaram um acordo para redução das armas nucleares.
“Portanto, não me comprometo que as economias que podemos obter graças a este amplo acordo serão destinadas a qualquer projeto de gasto federal”, acrescentou.
Em um discurso em 1991, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher alertou contra cortes excessivos nos orçamentos militares, enfatizando que os países deveriam manter a capacidade de se defender.
“O ponto mais importante que devemos destacar hoje é que o único dividendo real da paz é, simplesmente, a paz. A nossa geração desfrutou desse dividendo graças ao investimento de bilhões de dólares e libras na defesa”, ela disse.
Menos tanques, mais gastos públicos
Os orçamentos de defesa dos países de ambos os lados da Cortina de Ferro caíram drasticamente com o fim da Guerra Fria.
Em termos de PIB, o gasto militar do Reino Unido passou de 4,04% em 1989 (ano da queda do Muro de Berlim) para 2,07% em 2021 (ano anterior à invasão russa da Ucrânia), segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês).
No mesmo período, o gasto com defesa da França passou de 2,88% para 1,91%; da Alemanha, de 2,53% para 1,32%; da Holanda, de 2,52% para 1,40%; da Bélgica, de 2,46% para 1,04%; e da Espanha, de 2,36% para 1,35%, de acordo com a mesma fonte.
Os gastos militares também foram reduzidos nos países do antigo bloco comunista. Na Romênia, por exemplo, passou de 4,21% para 1,85%; na Bulgária, de 4,40% para 1,52%; e na Hungria, de 2,79% para 1,32% do PIB.
No caso dos EUA, os recursos destinados à defesa passaram de 5,87% do PIB em 1989 para 3,09% em 1999, mas voltaram a aumentar após os ataques de 11 de setembro de 2001.
Embora seja difícil quantificar até que ponto estes cortes na defesa foram convertidos em “dividendos da paz”, os economistas Florian Dorn, Niklas Potrafke e Marcel Schlepper fizeram uma estimativa, usando como base quanto dinheiro estes países deveriam ter gasto em defesa se tivessem sempre tido de cumprir os 2% de gastos militares acordados pela Otan.
De acordo com estes cálculos, os países europeus acumularam, desde o fim da Guerra Fria até 2023, um dividendo da paz de US$ 1,95 trilhão (1,8 trilhão de euros).
“A França e o Reino Unido são os dois únicos países entre as cinco maiores economias europeias que não receberam nenhum dividendo da paz, supondo que a meta de 2% da Otan seja suficiente. Do outro lado, estão a Alemanha, a Espanha e a Itália, com dividendos da paz anualizados que variam de 8 bilhões de euros [US$ 8,68 bilhões] a 20 bilhões de euros [US$ 21,71 bilhões]”, eles escreveram.
“Desde 1991, a Alemanha acumulou 680 bilhões de euros [US$ 738 bilhões] em dividendos da paz”, acrescentaram.
Estes economistas argumentam que as economias obtidas com a redução dos gastos militares se traduziram em uma expansão dos gastos públicos em outras áreas.
Na verdade, eles estimam que, quando reajustados pela inflação, em média, os orçamentos dos governos europeus dobraram entre o fim da Guerra Fria (ou o momento em que os países aderiram à Otan) e 2023.
Do oportunismo à dependência
Livres das ameaças da Guerra Fria, os governos europeus reduziram seus gastos com defesa e aumentaram — muito além, inclusive, dos dividendos da paz — seus gastos sociais.
“Desde 1990, os países europeus expandiram seus Estados de bem-estar social para um nível que não foi sustentado pelo desenvolvimento econômico geral”, escrevem Dorn, Potrafke e Schleppe.
Os pesquisadores acrescentam que, no caso dos países que aderiram à Otan durante o período do confronto entre Leste e Oeste, os gastos sociais cresceram a uma taxa maior do que a economia, o investimento e os orçamentos públicos.
“Atualmente, tanto os orçamentos públicos quanto a economia, reajustados pela inflação, são aproximadamente 1,9 vezes maiores do que eram em 1990. Em contrapartida, os gastos sociais aumentaram 2,4 vezes seu tamanho original”, observam.
“Os gastos sociais são, de longe, a maior categoria de despesa dos governos europeus. Em média, metade do orçamento público europeu é destinado a gastos sociais, como subsídios para sistemas previdenciários ou redistribuição para famílias de baixa renda e desempregados”, acrescentam.
Como isso foi possível? Não apenas por causa do fim da Guerra Fria, mas também, em grande parte, devido às garantias de segurança oferecidas pelos EUA.
“Uma vez que o tratado da Otan estabelece que um ataque contra um membro será considerado um ataque contra todos os membros, as capacidades de defesa dos Estados Unidos proporcionaram essencialmente um bem público a todos os outros membros. Inevitavelmente, isso oferece grandes oportunidades para tirar vantagem, desde que os Estados Unidos, a superpotência militar mundial, estejam dispostos e sejam capazes de se comprometer de maneira confiável a defender seus parceiros europeus”, explicam Dorn, Potrafke e Schleppe.
Assim, enquanto os EUA continuavam a investir no setor militar, a maioria dos parceiros europeus da Otan estava gastando menos nesta área.
Isso explica por que os EUA respondem atualmente por 70% dos gastos com defesa da Otan, enquanto em 1990 (no auge da Guerra Fria) eram responsáveis ​​por 61%.
Esta diferença não se traduz apenas em Washington dispor de mais e melhores equipamentos militares, mas também em uma forte dependência por parte dos países europeus que — como a guerra na Ucrânia evidenciou — não têm as armas e os sistemas de defesa necessários ou suficientes para enfrentar a Rússia sem o apoio dos EUA.
Para preencher esta lacuna, desde o início deste século, vem se falando na Otan sobre a necessidade de todos os países membros se comprometerem a gastar 2% do seu PIB em defesa.
Esta ideia foi incorporada em um compromisso de 2006, mas o avanço em direção a esta meta foi lento e escasso, mesmo após a invasão russa na Ucrânia.
Agora a situação parece estar mudando.
O desafio da defesa europeia
Em meados de 2023, o então secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, anunciou que, em média, os membros da aliança militar estavam aumentando seus gastos com defesa em 18% naquele ano. “O maior aumento em décadas”, ele disse.
Isso permitiria que 23 dos 32 países alcançassem a meta de 2%.
Este avanço notável, no entanto, parece insuficiente caso os EUA decidam retirar seu apoio militar à Ucrânia ou questionar seu compromisso com a defesa coletiva, conforme acordado na Otan.
Estes possíveis cenários acenderam o alerta na Europa e provocaram uma série de reuniões com o objetivo de fortalecer a independência europeia em termos de defesa.
Neste sentido, a Comissão Europeia propôs a iniciativa ReArm Europe (“ReArmar Europa”), que prevê mobilizar até US$ 868 bilhões para financiar investimentos em defesa.
Esta proposta contempla três mecanismos diferentes. Por um lado, ativar uma isenção do Pacto de Estabilidade da União Europeia, que limita o déficit fiscal e o endividamento em que os membros do bloco europeu podem incorrer, para permitir que eles aumentem seus gastos militares sem implicar em uma penalidade.
De acordo com as estimativas da Comissão Europeia, se cada país aumentasse seus gastos militares em 1,5% do PIB, em média, isso renderia a eles cerca de US$ 705 bilhões em quatro anos.
O segundo mecanismo corresponde ao estabelecimento de um mecanismo para disponibilizar cerca de US$ 163 bilhões em empréstimos para investimentos em defesa dos Estados membros.
“Estamos nos referimos a áreas de capacidade pan-europeias. Por exemplo: defesa aérea e antimísseis, sistemas de artilharia, mísseis e munições, drones e sistemas antidrones; mas também a outras necessidades, desde segurança cibernética até mobilidade militar. Isso vai ajudar os Estados-membros a consolidar a demanda e comprar conjuntamente”, diz a Comissão Europeia em sua proposta.
O terceiro mecanismo consiste em direcionar os fundos existentes no orçamento da União Europeia para fazer investimentos de curto prazo na área de defesa.
Será que isso vai ser suficiente?
Em primeiro lugar, devemos nos perguntar se isso é possível.
“Temos que pensar nas consequências destes gastos para além das compras de armas e do fortalecimento do setor”, afirma Diego Lopes, pesquisador do Sipri, em conversa com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
“Se estamos investindo agora com dívidas para a compra de armas, estes fundos e os juros que eles geram vão ter de ser pagos no futuro por meio de impostos ou cortes de gastos em outras áreas”, ele adverte.
“Há impactos. Por exemplo, se vão criar novos impostos, temos que ver quais. Se forem impostos regressivos, isso vai ter impacto na distribuição de renda e na igualdade no país. Portanto, não se trata apenas de defesa, temos que pensar nas consequências destes gastos para além da defesa.”
Ele indica que há alguns países, como a Itália, que possuem níveis de endividamento muito altos, e que dificilmente vão conseguir sustentar, e provavelmente vão ter de fazer cortes em outras áreas como, por exemplo, o Reino Unido fez, reduzindo a ajuda internacional e gastos com segurança social.
“Este é um processo de mudança não só orçamentária, mas também institucional e econômica para sustentar esses gastos no futuro. É isso que está sendo discutido agora: como tornar esses aumentos sustentáveis do ponto de vista econômico e fiscal”, ele observa.
Além dos aspectos financeiros, Lopes ressalta que os países europeus têm muitas questões para resolver e muitas decisões para tomar.
Ele explica que a indústria de defesa na Europa é altamente fragmentada, o que gera ineficiências.
“Há diretrizes da União Europeia para fortalecer as compras de armas dentro do bloco, mas a implementação ainda não foi concluída. É um processo burocrático muito complexo, e também de investimento — eles vão comprar armas da sua própria indústria? Vão comprá-las de outro país? É um problema de ação coletiva muito complexo”, avalia.
Ele destaca, por exemplo, que os países europeus costumam comprar grande parte do seu armamento de empresas americanas, mas adverte que continuar a fazer isso significa simplesmente permitir que Washington continue a ter influência, o que impediria alcançar a meta de aumentar a autonomia estratégica proposta por Macron.
Apesar destas dificuldades, Lopes está otimista.
“A guerra na Ucrânia foi um choque para os europeus, que estavam quase num estado de inércia em relação a estas questões, mas agora vão ter de resolver ou criar novos mecanismos de defesa dentro do continente. Este plano ReArm Europe é uma indicação muito clara do que estão fazendo”, afirma.
“Há uma mudança nas relações transatlânticas, mas também na forma como a Europa vê sua relação consigo mesma. Acredito que agora vamos entrar num período de maior cooperação entre os europeus nestas questões, e também de não sermos tão dependentes dos Estados Unidos. Portanto, as coisas mudaram de forma fundamental”, conclui.
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Fonte: G1

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