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Cuiaba - MT / 12 de janeiro de 2025 - 23:58

Do alívio imediato à dependência: o impacto da prescrição excessiva de medicamentos no Brasil

Por meio de estudos de caso, pesquisas científicas e entrevistas com diversos profissionais, ela mostra como os sistemas de saúde modernos e as grandes corporações farmacêuticas contribuem para o aumento alarmante do consumo de substâncias como sedativos, opioides e outros psicotrópicos.

Para Lembke, estamos diante de uma crise que afeta não só os Estados Unidos, mas também outros países, incluindo o Brasil — como você lê no trecho a seguir.

As overdoses de drogas nos Estados Unidos chegaram a 100 mil em 2022, e a principal causa agora é o fentanil ilícito. Mas há boas notícias também.

A prescrição de opioides diminuiu 40% no país desde seu pico por volta de 2011, o que inclui uma diminuição de 6,9% a partir de 2019 e 2020. Em paralelo, com a diminuição na prescrição de opioides, temos visto uma acentuada diminuição nas overdoses de drogas envolvendo opioides prescritos.

Em outras palavras, as pessoas ainda morrem de overdose de opioides, mas a principal causa de mortalidade por opioides não são mais os médicos. Ao mesmo tempo, um movimento da medicina em favor da cannabis e dos psicodélicos ganhou grande impulso nos Estados Unidos.

Vemos regularmente adolescentes que fumam ou inalam vapor de extrato de cannabis de alta potência todos os dias para tratar ansiedade, insônia, depressão e dor, e usam psicodélicos como o LSD e a psilocibina para buscar um “despertar espiritual”.

Não há evidência confiável de que cannabis ou psicodélicos atuem para tratar transtornos de saúde mental como depressão ou ansiedade, em especial a longo prazo, mas isso não tem impedido que fontes noticiosas da grande mídia as exaltem como drogas maravilhosas para resolver as crises de saúde mental de nossos jovens.

O Brasil está num momento preocupante em relação à prescrição de opioides e psicotrópicos. O país mostra os primeiros sinais de excesso, mas que não chegam a ponto de torná-lo irreversível.

Aumento na venda de opioides e nos investimentos em marketing

O Brasil, historicamente, tem acesso limitado a opioides prescritos mesmo para aqueles que sofrem com dor severa e dores terminais. Evidências recentes sugerem que a tendência pode ser revertida, em especial no caso de certos opioides.

A venda de opioides prescritos aumentou 465% no Brasil entre 2009 e 2015, assim como os investimentos no marketing de medicamentos relacionados a opioides prescritos. Os maiores aumentos foram vistos em relação à codeína, um opioide de baixa potência, e à oxicodona e ao fentanil, que são de alta potência.

É difícil a essa altura dizer se esse aumento está atendendo à necessidade médica de controle da dor ou se representa um suprimento excessivo. Mas aumentos acentuados na prescrição observados em períodos curtos de tempo e coincidentes com um marketing mais intensivo, ainda mais de opioides de alta potência, sugerem a necessidade de ter cautela.

Os opioides não são o único problema. Sedativos como o clonazepam e estimulantes como o metilfenidato são prescritos em excesso nos Estados Unidos, assim como antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores de humor. O Brasil pode não estar muito longe disso.

O clonazepam, uma benzodiazepina sedativa usada para controlar ansiedade e insônia, é uma das drogas psicotrópicas mais prescritas no Brasil, e os maiores índices de prescrição são para mulheres, doentes mentais e pobres.

A prescrição do clonazepam aumentou no Brasil durante a pandemia da covid-19, acelerando uma tendência pré-pandêmica. Sabemos que, quanto mais tempo os pacientes ficam nas benzodiazepinas, maior a probabilidade de sofrerem consequências adversas, como quedas, declínio cognitivo e adicção.

Além disso, o Brasil está entre os maiores consumidores de medicamentos para perda de peso, incluindo drogas que contêm anfetamina, um estimulante altamente aditivo. O Supremo Tribunal Federal tem aprovado legislação para tentar coibir o consumo de drogas baseadas em anfetaminas, mas o impacto dessa legislação ainda é incerto.

Por fim, a prescrição de antidepressivos tem aumentado no Brasil na última década, como tem ocorrido também nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos

A questão é que os Estados Unidos, o Brasil e vários países do mundo estão cada vez mais confiando em um comprimido para lidar com o sofrimento humano, sem avaliar os custos a longo prazo ou cogitar que os comprimidos que aliviam a dor a curto prazo têm a possibilidade de torná-la pior com o tempo.

Médicos que não eliminam a dor são vistos como maus profissionais

São muitos os fatores que contribuem para esta tendência. Em primeiro lugar, temos as expectativas culturais em torno da dor. Hoje em dia, as pessoas alimentam cada vez mais a ideia de que a vida precisa ser isenta de dor; experimentar dor, seja de que tipo for, indicaria que há algo de errado conosco e com a nossa vida.

Além disso, como grande parte da vida moderna tornou-se medicalizada e patologizada, os médicos estão cada vez mais incumbidos da tarefa de eliminar a dor; quando se mostram incapazes disso, são vistos como maus médicos.

Em segundo lugar, nossos sistemas de assistência médica estão no limite. De um lado, espera-se que os médicos atendam mais pacientes durante sua jornada de trabalho do que uma pessoa é capaz de sustentar ao longo de sua carreira profissional.

De outro, os pacientes têm que aguardar meses para serem atendidos, mesmo para condições mais sérias, que podem se agravar com o tempo.

Nesse contexto, os médicos desesperados prescrevem comprimidos, porque agem mais rápido e propiciam conforto imediato, já que o tratamento mais lento (e que traria uma cura real) ou não está coberto pelo sistema ou não faz parte dos recursos que os médicos podem solicitar e/ou que os pacientes têm condições de pagar.

Em terceiro lugar, remédios, em especial pílulas e comprimidos, são um grande negócio. A indústria farmacêutica, que agora segue a mesma cartilha de marketing que a indústria do bem-estar, promove esses medicamentos como o caminho para uma vida mais saudável e feliz para pessoas de todas as idades e condições.

Só que, quase sempre, ela é indiferente aos riscos subjacentes de um alívio a curto prazo para problemas de longo prazo, incluindo aí graves problemas sociais.

O fato de ao redor do mundo serem prescritos mais psicotrópicos a pessoas que vivem na pobreza indica que estamos usando substâncias químicas para acalmar as massas, em vez de fazer as mudanças sociais tão necessárias.

Erros cometidos nos EUA devem servir de lição para os brasileiros

O Brasil pode aprender com os erros que os Estados Unidos cometeram se conseguir regular e rastrear a produção, o transporte e a venda em farmácia de opioides prescritos e de outros produtos farmacêuticos aditivos e mortíferos, além de educar os prescritores e pacientes a respeito dos riscos, dos benefícios e das alternativas, incluindo os riscos de adicção e morte.

O Brasil pode tomar medidas para limitar a parceria entre o setor farmacêutico e a tomada de decisões médicas. Sabemos que, quanto maior a influência e o contato que a indústria farmacêutica tem com os médicos, mesmo em encontros breves, maior a probabilidade de os médicos prescreverem essas drogas.

O Brasil pode também trabalhar para tornar as intervenções não farmacológicas mais acessíveis e de custo mais baixo para todos os brasileiros, em especial no que se refere à dor crônica e a transtornos de saúde mental, que podem reagir melhor a estratégias não farmacológicas no longo curso.

Esses são aspectos da medicina nos quais os Estados Unidos continuam trabalhando. O progresso é lento, mas está acontecendo.

noticia por : Gazeta do Povo

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