Outro dia fui tomar café com um amigo roteirista preto e gay que, entre um assunto e outro, me confessou baixinho: não aguento mais ser chamado só para escrever histórias de preto, gay, ou histórias de preto gay. Concordei, falando como se estivesse soltando um segredo de Estado, ou a fórmula da Coca-Cola, que adoraria receber convites para fazer roteiros sobre outros temas que não fossem a maternidade, o ponto de vista feminino, o ponto de vista feminino sobre a maternidade.
Falamos assim, baixinho, porque num país onde a indústria audiovisual foi esfarelada pelo governo anterior e ainda está longe de ser reconstruída pelo atual, ser chamado para escrever sobre qualquer assunto já é motivo para soltar rojão. (Topo até escrever post-it, desde que pago.)
Mas, como roteirista vive de sonhar, vou até o céu e já volto. A Poliana que habita em mim sonha com o momento em que vamos voltar a produzir como estávamos produzindo há dez anos. E, de quebra, teremos a oportunidade de falar a partir de nossos lugares de fala e de muitos outros. Antes de me queimar na sua fogueira cibernética, deixo claro: não estou questionando a iniciativa de incluir mulheres, gays e todas as minorias nos projetos ou em qualquer conversa. Representatividade é inquestionável. Ponto.
O que eu questiono é quando a inclusão vem como a cantora Simone, uma vez ao ano sempre com o mesmo assunto: “Então é Natal”. Chamar mães só para escrever coisas de mães, pretos só para escrever histórias de pretos, mulheres mais velhas para falar com mulheres mais velhas é reducionista. Minha experiência de vida não se resume a ter dado o peito a um bebê. Já fiquei de peito de fora, já fui jovem. Aliás faço muito mais sexo do que os jovens de hoje em dia. Então, por que raios o mercado presume que, aos 42 anos, já não sei mais pensar ou sentir como eles?
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Discussões, notícias e reflexões pensadas para mulheres
Alô, etarismo? Ok, eu falo “balada” quando balada já não existe mais. Mas para descobrir gírias novas tem pesquisa, minha gente. Chamem meu amigo e a mim para escrever sobre os assuntos que conhecemos e os que não. Um filme sobre um serial killer, um trader cocainômano do mercado financeiro, o ponto de vista de um louco querendo fugir de um manicômio. Toda mulher que já passou pelo puerpério sabe bem o que é isso. Angela Davis já escreveu brilhantemente: “Precisamos pensar nossas diferenças como fagulhas criativas. Não como separações”.
Claro que é importante saber exatamente qual é o seu lugar de fala em qualquer discussão. Mas não queremos falar de um único lugar. Há alguns anos escrevi com outra roteirista mulher um thriller. O “elogio” que recebemos de um executivo foi: “Nossa, a série é tão violenta, nem parece que foi escrita por duas mulheres”. Meu amor, você não imagina quão violenta eu posso ser quando ouço uma groselha desse tipo.
Se a gente escolheu escrever, foi justamente pelo exercício de vestir a pele do outro. Tantos homens brancos já vestiram a nossa, por que o contrário não pode acontecer? Façamos uma mistureba para ver onde dá. Tenho certeza de que dessa suruba de vozes nascerão pontos de vista mais originais. Poliana? Pode ser. Mas sonhar é como trabalho de roteirista, não custa nada.
noticia por : UOL