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Cuiaba - MT / 12 de abril de 2025 - 7:23

Lugar de fala ou de falha?

Outro dia fui tomar café com um amigo roteirista preto e gay que, entre um assunto e outro, me confessou baixinho: não aguento mais ser chamado só para escrever histórias de preto, gay, ou histórias de preto gay. Concordei, falando como se estivesse soltando um segredo de Estado, ou a fórmula da Coca-Cola, que adoraria receber convites para fazer roteiros sobre outros temas que não fossem a maternidade, o ponto de vista feminino, o ponto de vista feminino sobre a maternidade.

Falamos assim, baixinho, porque num país onde a indústria audiovisual foi esfarelada pelo governo anterior e ainda está longe de ser reconstruída pelo atual, ser chamado para escrever sobre qualquer assunto já é motivo para soltar rojão. (Topo até escrever post-it, desde que pago.)

Mas, como roteirista vive de sonhar, vou até o céu e já volto. A Poliana que habita em mim sonha com o momento em que vamos voltar a produzir como estávamos produzindo há dez anos. E, de quebra, teremos a oportunidade de falar a partir de nossos lugares de fala e de muitos outros. Antes de me queimar na sua fogueira cibernética, deixo claro: não estou questionando a iniciativa de incluir mulheres, gays e todas as minorias nos projetos ou em qualquer conversa. Representatividade é inquestionável. Ponto.

O que eu questiono é quando a inclusão vem como a cantora Simone, uma vez ao ano sempre com o mesmo assunto: “Então é Natal”. Chamar mães só para escrever coisas de mães, pretos só para escrever histórias de pretos, mulheres mais velhas para falar com mulheres mais velhas é reducionista. Minha experiência de vida não se resume a ter dado o peito a um bebê. Já fiquei de peito de fora, já fui jovem. Aliás faço muito mais sexo do que os jovens de hoje em dia. Então, por que raios o mercado presume que, aos 42 anos, já não sei mais pensar ou sentir como eles?

Alô, etarismo? Ok, eu falo “balada” quando balada já não existe mais. Mas para descobrir gírias novas tem pesquisa, minha gente. Chamem meu amigo e a mim para escrever sobre os assuntos que conhecemos e os que não. Um filme sobre um serial killer, um trader cocainômano do mercado financeiro, o ponto de vista de um louco querendo fugir de um manicômio. Toda mulher que já passou pelo puerpério sabe bem o que é isso. Angela Davis já escreveu brilhantemente: “Precisamos pensar nossas diferenças como fagulhas criativas. Não como separações”.

Claro que é importante saber exatamente qual é o seu lugar de fala em qualquer discussão. Mas não queremos falar de um único lugar. Há alguns anos escrevi com outra roteirista mulher um thriller. O “elogio” que recebemos de um executivo foi: “Nossa, a série é tão violenta, nem parece que foi escrita por duas mulheres”. Meu amor, você não imagina quão violenta eu posso ser quando ouço uma groselha desse tipo.

Se a gente escolheu escrever, foi justamente pelo exercício de vestir a pele do outro. Tantos homens brancos já vestiram a nossa, por que o contrário não pode acontecer? Façamos uma mistureba para ver onde dá. Tenho certeza de que dessa suruba de vozes nascerão pontos de vista mais originais. Poliana? Pode ser. Mas sonhar é como trabalho de roteirista, não custa nada.

noticia por : UOL

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