Os mais de seis milhões de judeus assassinados pelo regime nazista são a lembrança mais pungente no Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, celebrado no último dia 27. Há outras, contudo.
Menos hiperbólico em números isolados, mas não em horror, foi o massacre de outras minorias no período, como homossexuais, pessoas com deficiência, ciganos e Testemunhas de Jeová. Somados, são cerca de cinco milhões de dizimados que não eram judeus.
O primeiro aniquilamento sistemático atingiu pessoas doentes ou com deficiência, tidas como empecilho à superioridade ariana alardeada pelos nazistas. Matou milhares. Muitos eram crianças.
Em 1939, o Terceiro Reich ordenou que profissionais da saúde relatassem os menores de três anos que tivessem alguma deficiência mental ou física severa —o escopo etário seria alargado mais tarde. Mesmo antes disso já havia as internações compulsórias, que podiam ter como desfecho o assassinato.
Matar de fome, por gás ou com injeções letais foram alguns dos recursos eugenistas contra o contingente. Nazistas chamavam a campanha homicida de eutanásia.
As Testemunhas de Jeová viraram alvo por se recusarem a fazer a saudação “heil, Hitler” e não permitir que suas crianças aderissem à Juventude Hitlerista, entre outros antagonismos que desagradaram a ditadura.
Elas se diziam apolíticas, postura guiada pela fé e não por uma birra em particular com o nazismo, o que não colou entre autoridades alemãs. Suspeitavam que esses fiéis, inclusive, tinham conexões internacionais conspiratórias.
Até a crença no retorno dos judeus à terra sagrada de Israel antes do apocalipse os colocava sob suspeita. Acabavam tabeladas como sionistas, segundo Michel Reynaud e Sylvie Graffard, autores de um livro sobre a perseguição contra o bloco religioso na era nazista.
Estima-se que milhares tenham morrido nos campos de concentração. Há relatos de que os confinados reuniam-se para orar e buscar converter colegas de cativeiro. A testemunha Friedrich Frey, como reproduzido no livro de Reynaud e Graffard, lembra de torturas sofridas, como o dia em que um agente, ao vê-lo comer migalhas de pão seco, chutou seu estômago.
Frey conta que foi em seguida pendurado num poste de três metros, os braços amarrados para trás. Um oficial o agarrou pelas pernas, balançando-as violentamente enquanto o inquiria: “Você ainda é uma testemunha de Jeová?”. “Eu era incapaz de responder, com o suor da morte empapando minha testa.”
Renunciar à sua fé era uma saída oferecida para esses prisioneiros. A maioria declinou a oferta.
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As testemunhas eram marcados por um triângulo roxo costurado nas roupas, seguindo a praxe nazista de rastrear aqueles vistos como indesejáveis na sociedade. O símbolo mais conhecido é a estrela de Davi acoplada às vestes judaicas.
Homens gays eram identificados por um triângulo rosa. A orientação sexual já havia sido descrita como antinatural e criminalizada em 1871, por meio do parágrafo 175 no Código Penal do Império Alemão. Os nazistas, então em ascensão, o amplificaram nos anos 1930.
Adolf Hitler teve entre seus asseclas um oficial abertamente homossexual, Ernst Röhm. O chefe de uma unidade paramilitar nazista acabou executado, em disputas internas no nazismo que desembocaram na sanguinolenta Noite das Facas Longas. Nos anos seguintes, homens gays entraram na mira do nazismo.
Hitler chegou a declarar que não deixaria rapazes alemães tornarem-se “moralmente corrompidos” na hierarquia nazista. Anos depois, em torno de 15 mil foram enviados aos campos de concentração. Esterilização e castração estavam entre os métodos adotados contra aqueles tidos como incorrigíveis em sua homossexualidade.
Outros emblemas diferenciavam os grupos desumanizados pelo regime. Criminosos comuns usavam triângulos verdes sobre o uniforme listrado, e presos políticos, vermelhos.
O extermínio em massa de ciganos pode ter trucidado perto do milhão deles. Eram os triângulos marrons ou pretos, que formavam numa categoria mais ampla —os associais, franjas sociais que abrangiam de moradores de ruas a alcoólatras.
Professor de sociologia e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, Michel Gherman aponta duas correntes hegemônicas da historiografia. Uma trabalha “com a ideia de que o antissemitismo determinou o nazismo, e aí há outras vítimas periféricas e pontuais”, diz.
Uma segunda ala não ignora o ódio superlativo contra judeus, que transbordava nos discursos de Hitler sobre uma conspiração judaica. Mas vê no mosaico de grupos vitimados uma chave mais apropriada para decodificar o nazismo.
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“No que podemos chamar de perseguição genocida, as primeiras vítimas foram as pessoas com deficiência”, lembra Gherman. Dachau, campo de concentração seminal, estabelecido ainda em 1933, tinha como cativos prioritários comunistas e outros presos políticos.
A intolerância racial suplantava a aversão a crenças divergentes. “Tem um texto interessante de Hitler dizendo que ele supostamente respeitaria a prática religiosa judaica. O problema do nazismo é com raça. Então, objetivamente, protestantes, católicos, outras religiões, não foram perseguidas” pela confissão de fé.
As quase sempre arianas Testemunhas de Jeová, por exemplo, só perturbaram porque, por motivos religiosos, rejeitaram-se a prestar fidelidade ao führer.
“A grande questão do nazismo”, para Gherman, “é uma gramática discriminatória e exterminadora“. A referência maior em relação a todas essas vítimas “é que elas degeneram biologicamente ou conspiram politicamente”. Por vezes ambas. Tentaram a chamada solução final contra os judeus por isso. Em 1945, Hitler se matou, e o nazismo ruiu.
noticia por : UOL