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Cuiaba - MT / 1 de janeiro de 2025 - 4:05

O melhor livro que li em 2024

Não foi nada fácil escolher o melhor livro que li em 2024, especialmente tendo terminado este mês entre as páginas do cativante “De Quatro”, de Miranda July. Mas deixo para esse romance a prata ou o bronze, içando até o alto do pódio as 947 páginas do monumental “Um Defeito de Cor”.

O leitor já deve ter ouvido falar desse clássico contemporâneo, considerado por alguns o principal romance brasileiro do século 21. Como era possível que esta escritora ainda não tivesse lido?

Fui tirar o atraso, mergulhando neste relato inspirado na vida de Luísa Mahin, mãe do famoso abolicionista e poeta Luiz Gama, e na de outras mulheres negras que viveram no mesmo período.

A história da personagem Kehinde, nome de batismo de Luísa, começa na África, quando ainda era criança. Ela, a irmã e a avó são capturadas e enviadas em um navio negreiro para o Brasil, em condições tão degradantes que só a protagonista sobrevive.

Daí para frente, testemunhamos a escravidão pelos olhos da menina, comprada para ser a escravizada de uma sinhazinha, e tão empenhada em sobreviver que aprende, na surdina, a ler, escrever e até a falar inglês, enquanto junta dinheiro para comprar a sua liberdade.

Kehinde se liberta. Enriquece. Tem papel importante na revolta dos Malês. Perde um filho. Ganha outro, o Luiz Gama, que desaparece de uma forma cruel e absurda. Passa a procurá-lo por diversos lugares do Brasil. Acaba parando na África, onde também ganha projeção, dinheiro e respeito, inclusive dos colonizadores. E reafirma um traço que parece comum às mulheres negras em qualquer época: a aposta no coletivo —a cada movimento bem-sucedido de Kehinde, e foram vários, ela emancipa consigo vários de seus pares.

No começo da leitura, me reencantei com o poder de um bom romance: mesmo tendo estudado a escravidão, foi só pelo relato sinestésico da protagonista que tive uma dimensão mais exata do horror desse período.

A autora, Ana Maria Gonçalves, fez uma escolha certeira: narrar a história em primeira pessoa, dando voz a quem finalmente merecia ter uma —a autora escreveu cinco versões do livro até optar por esse foco narrativo, e 19 versões ao todo.

O relato em primeira pessoa nos aproxima ainda mais da personagem e de Luísa Mahin que, apesar de sua importância histórica, até este ano, sequer tinha um rosto. Se você desse um search em seu nome, veria a imagem genérica de uma mulher negra de turbante, usada também para representar Tereza de Benguela e Maria Felipa. Falha que foi corrigida por uma campanha feita por pesquisadoras negras, junto ao Banco do Brasil, que acaba de reconstituir o rosto de cada uma dessas mulheres.

Há muitos aspectos desse livro a se destacar mas, ao fim, o que mais me impressionou foi como, apesar de vivermos em contextos tão diferentes, eu, Kehinde e tantas outras mulheres dividimos os mesmos sentimentos: o pavor de perder um filho, o desejo de ser amada, a solidão mesmo dentro do casamento, o receio de envelhecer sem ter acertado certas contas.

É dessa riqueza de camadas subjetivas e históricas, tão bem justapostas, que nasce o brilhantismo desse romance, que ainda traz à luz narrativas até então varridas para baixo do cânone.


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noticia por : UOL

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