No início de 1990 cresceram outra vez as inquietações, agora sobre os planos de Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito por voto direto desde Jânio Quadros, em 1960. A questão maior era a inflação, em níveis nunca vistos no país, 53,5% em dezembro, e com sinais de chegar a 70% em fevereiro.
Collor fora adotado como candidato da direita, pelas posições liberalizantes e autoritárias e pela arrancada no primeiro turno, em 15 de novembro. Com 30,5% dos votos, ficou pouco abaixo da soma de 17,2% de Luís Inácio Lula da Silva, do PT, e 16,5% de Leonel Brizola, do PDT. Ultrapassado por Lula na reta final, Brizola logo aderiu à campanha petista no segundo turno, marcado para 17 de dezembro. A frente de esquerda mostrava força para derrotar Collor.
O ano de 1989 foi um dos mais estranhos da história política e econômica do Brasil. A economia cresceu 3,2%, apesar da confusão política e dos riscos de hiperinflação. Empresas e pessoas que tinham contas em bancos colocavam seu dinheiro no overnight, o over, aplicação por um dia com juros diários equivalentes ao que o Banco Central (BC) sinalizava que era a inflação do momento. O over eram aplicações em títulos da dívida pública, resgatáveis no dia seguinte. Era preciso depositar cédulas e cheques até as 16 horas para ganhar os juros, acima de 2% por dia útil. Mais da metade das pessoas não tinham acesso ao over, por não terem conta bancária. Era crucial gastar o mais depressa possível todo o dinheiro disponível. Em dias de pagamento de salários, vi brigas em supermercados para conseguir um carrinho, necessário para levar até o caixa tudo que se pudesse pagar.
A instabilidade era evidente: empresas e pessoas podiam sacar o dinheiro do over em uma corrida para comprar dólares e bens, e viria a hiperinflação.
A dívida pública interna, emitida em moeda nacional, não era grande – em torno de 40% do PIB. O valor real dos títulos era corroído porque os juros diários subestimavam a inflação corrente. O BC seguia índices que mediam a variação de preços coletados semanas antes. Por mais que a coleta fosse acelerada, o resultado sempre mediria o que já ocorrera. A inflação crescente estava quase sempre acima dos juros pagos nas aplicações a cada momento. O problema com a dívida era a precariedade de seu financiamento. Uma onda de desconfiança poderia levar muita gente a sacar tudo do over e gastar. Restariam então duas opções: fechar os bancos e bloquear os depósitos; ou emitir o dinheiro desejado, o que precipitaria a hiperinflação.
Em círculos de economistas, o tema era muito discutido. A Carta de Conjuntura do Conselho Regional de Economia de São Paulo (Corecon-SP), de abril de 1989, foi toda dedicada ao que fazer com a dívida pública. Em um dos quatro artigos curtos, Gilberto Dupas, vice-presidente do Grupo Safra, definia a situação como “crítica” e advertia para os “riscos trágicos” de “qualquer abordagem populista”. Sua proposta era “uma corajosa reforma do setor público” e a formulação de “proposta nacional realista e pragmática” que abrisse caminho para “um programa de ajuste não traumático da dívida interna” que exigiria “um inevitável e compulsório alongamento dos prazos de aplicação”. Em outro artigo, o professor da USP Álvaro Antônio Zini Jr. foi contundente: “Para evitar o calote geral, tenho proposto que a dívida interna deve ser transformada em títulos de longo prazo.” Para ele, o governo deveria converter a dívida em títulos de dez anos, com 5% de juros ao ano e carência de oito anos.
Em abril de 1989 estava liquidado o Plano Verão, experimento ridículo, o terceiro dos chamados choques heterodoxos do governo Sarney, depois do Plano Cruzado, de 1986, e do Plano Bresser, de 1987. O termo heterodoxo ganhara o debate público para indicar propostas de intervenções não convencionais na economia, como o congelamento de preços.
A inquietação aumentou com a subida de Lula nas pesquisas em setembro. Economistas e apoiadores do PT falavam em moratória da dívida externa, mudanças na dívida interna, estatização dos bancos. As posições oficiais da campanha eram cautelosas, mas não reduziam os receios sobre o que Lula faria. As elites se assustaram ao perceber que os problemas poderiam ficar nas mãos da esquerda.
Lula subiu muito nas pesquisas. Collor radicalizou: no último debate na Rede Globo e no Programa Ferreira Neto, acusou o petista de planejar o confisco das cadernetas de poupança e o calote da dívida pública.
O candidato petista foi derrotado por Collor, por 47% a 53%. Elites políticas e econômicas ficaram aliviadas, mas o clima voltou a pesar em poucas semanas. Ninguém sabia o que Collor planejava, nem quais eram as ideias de seus assessores econômicos, reunidos em torno de Zélia Cardoso de Mello, sobre a qual também pouco se sabia. O seu círculo mais próximo agrupava economistas simpáticos ao Instituto de Economia da Unicamp, um bastião da heterodoxia. Eram nomes pouco conhecidos. Foi um alívio a incorporação de Ibrahim Eris, profissional de mercado, economista ortodoxo. Só que entrou também Antônio Kandir, do grupo da Unicamp e da equipe de Ulysses Guimarães, candidato do PMDB. Pouco antes do primeiro turno, Ulysses falou da necessidade de “acabar com o overnight” e com o “Himalaia de juros”.
No final de dezembro de 1989, o segundo surto de hiperinflação na Argentina marcou 100% ao mês. O governo de Carlos Menem, peronista convertido a liberal, aliado a grandes grupos econômicos, promoveu a conversão compulsória dos depósitos bancários em títulos de dez anos de prazo, os Bônus Externos (Bonex). Na reabertura dos bancos, no começo de janeiro, a imprensa brasileira mostrou tentativas de incendiar agências e agressões a gerentes. Pouco depois, e apesar do alongamento forçado dos títulos, veio o terceiro surto, com inflação de 80% na segunda metade do mês.
No começo de janeiro, Collor ainda não anunciara seu ministro da Economia. Especulava-se que seria a própria Zélia, ou Daniel Dantas, banqueiro de confiança de Mário Henrique Simonsen, o mais destacado economista ortodoxo na época. Com a posse se aproximando, em 15 de março, data em que era realizada na época, o presidente eleito não dava declarações para conter a insegurança. Ao falar da inflação, usava expressões enigmáticas, “golpe mortal de karatê”, “apenas uma bala para matar o tigre”. Em meados de fevereiro o risco de moratória da dívida do governo entrou no debate público. As falas eram seguidas por tentativas de tranquilização, pois nenhum presidente faria algo que pudesse desestabilizar o país.
Ainda em janeiro, tive uma conversa no Centro de São Paulo com um velho amigo, economista e de esquerda como eu. Repassamos problemas e alternativas e concluímos que viria o bloqueio dos depósitos. Os planos do governo Sarney tinham sido derrotados pela incapacidade de conter a explosão de consumo depois de um congelamento de preços, problema que não se sabia como evitar. A alternativa seria uma política de negociação, com metas trimestrais ou algo assim. Era a minha proposta para um governo Lula, muito improvável com Collor, pelo seu perfil pessoal e político.
Em meio à grande insegurança, por que não houve pânico ou saques generalizados dos depósitos? Resposta mais simples: sacar o dinheiro para fazer o quê? Quem podia mandar para o exterior já tinha mandado. Para muitos, aquele era o dinheiro do dia a dia, o caixa do negócio, o sustento da família. Tirar do over custaria quase 3% por dia útil, nível a que os juros tinham chegado. Ninguém estava disposto a deixar o dinheiro em depósitos à vista, que talvez fossem atingidos também, ou sacar e levar para casa, pois havia riscos de segurança.
Semanas depois da conversa de janeiro, meu amigo foi fazer uma palestra em uma cidade gaúcha. Um empresário perguntou o que fazer nas vésperas da posse de Collor. O conselho foi retirar todo o dinheiro dos bancos e guardar em casa ou na empresa. “E por que não alugar um cofre no banco?” Respondeu: “Podem lacrar as agências…” O sujeito olhou incrédulo, não disse nada. Meu amigo não seguiu o próprio conselho, quis esperar mais um dia e acabou sendo pego pelo feriado bancário.
Em fevereiro avisei minha mãe e meu irmão que viria o bloqueio. Eles não fizeram nada. Eu tinha algum dinheiro aplicado, decidi gastar tudo. Na tarde do dia 12, comprei som novo, sofá, poltronas. Deixei no banco menos de 100 mil cruzados novos, que eu estimava como limite para o bloqueio, não lembro por quê. Na noite de 13 de março, terça-feira, o BC decretou feriado bancário até o final da semana.
Na manhã da sexta-feira, dia 16, um dia depois da posse de Collor, foi anunciado o bloqueio das contas bancárias e das aplicações financeiras acima de 50 mil cruzados novos.
O choque foi enorme. O cruzado novo foi substituído pelo cruzeiro, a terceira troca de moeda desde 1986. Como nas anteriores, as cédulas em circulação mantinham o valor em cruzeiros e podiam ser usadas livremente. Para saque e uso de contas em bancos, cadernetas de poupança, depósitos a prazo, aplicações no overnight e fundos, o limite era de 50 mil cruzados novos. Isso equivalia a 1,3 mil dólares pelo câmbio oficial de 13 de março; pelo paralelo, referência usual na época, algo entre 600 e 800 dólares.
Os valores acima desse limite permaneceriam retidos por dezoito meses em contas em cruzados novos. Seriam liberados em doze parcelas mensais a partir do 19º mês, com juros de 6% ao ano mais correção monetária. Os valores retidos poderiam ser usados por dois meses para pagamento de impostos e contratos anteriores a 15 de março. E por 180 dias podiam ser transferidos entre pessoas físicas e jurídicas “para fins de liquidação de dívidas e operações financeiras comprovadamente contratadas antes de 15/3/1990”, a chamada transferência de titularidade. Nos dois casos, os valores transferidos seriam depositados nas contas em cruzados novos de quem os recebesse.
As aplicações financeiras, bloqueadas ou liberadas, não tiveram a correção diária dos dias do feriado bancário e a correção da primeira parte de março subestimou a inflação corrente. E havia ainda o imposto extraordinário de 8% na conversão para cruzeiros. Essas regras causaram fortes perdas no valor real das aplicações e deram lugar a disputas judiciais que se arrastariam por anos.
Para quem teve valores bloqueados, o sentimento era de confisco, empobrecimento drástico, queda acentuada do padrão de vida. E a perspectiva era de violenta retração do comércio e das atividades produtivas. De início, pouca gente acreditou que o dinheiro retido seria devolvido ou que seria corrigido se a inflação voltasse.
O anúncio ajudou a aumentar a confusão. Na mesa, Zélia, Eduardo Modiano, então presidente do BNDES, Kandir e Ibrahim Eris, novo presidente do BC, que tentava explicar as medidas com seu forte sotaque de nascido e criado na Turquia. As explicações não eram claras. Em alguns momentos, clima de improviso, de assembleia estudantil. Perplexidade geral.
As pessoas se perguntavam o que iria acontecer, como iriam viver com tão pouco dinheiro. Circulavam comentários sobre conhecidos que tinham vendido imóvel para comprar outro e não tinham mais o dinheiro, sobre despesas médicas a quitar, pequenos negócios com dívidas pendentes e sem poder pagar salários.
A reabertura dos bancos foi muito confusa na segunda-feira, 19 de março. Não havia instruções claras para os bancos e menos ainda para as agências. No final da manhã travou o sistema do BC, o Selic, pressionado pela criação às pressas de dois sistemas de contas, em cruzeiros e em cruzados novos retidos. Gerentes não sabiam informar saldos disponíveis e nem como fazer pagamentos com cruzados retidos. E os bancos não conseguiam saber qual a sua própria posição no BC.
A surpresa com o bloqueio dificultou a percepção do conjunto das medidas adotadas. O programa anunciado no dia 16 se intitulava Plano Brasil Novo. Plano Collor foi o nome que prevaleceu, designando apenas o bloqueio das aplicações financeiras, sem referências às iniciativas em áreas diversas – abertura comercial, privatizações, fim dos controles de preços, reforma do Estado. Essas medidas não dependiam do bloqueio da liquidez e representavam uma mudança histórica da economia brasileira em direção à liberalização e à redução do papel do Estado, como o pensamento liberal propunha. No essencial, foram preservadas e aprofundadas pelos governos seguintes, inclusive por Lula a partir de 2003, início de seu primeiro mandato.
Esse pode ter sido o principal motivo para o apoio generalizado que o bloqueio recebeu entre economistas, empresários e políticos. Poucos dias depois do lançamento do plano, Ibrahim Eris foi aplaudido em uma fila de embarque no Aeroporto de Congonhas. Temeroso do que poderia ocorrer, levara seguranças para protegê-lo.
Semanas depois dessa turbulência, o empresário gaúcho procurou meu amigo em São Paulo para agradecer, lucrara muito, só ele tinha dinheiro para pagar à vista e comprara muita coisa com grandes descontos. Meu amigo não seguiu o próprio conselho e foi pego pelo feriado bancário inesperado.
Três notas no Painel Econômico, da Folha de S.Paulo, em 20 de março de 1990, com o título Outsider petista, diziam que eu antecipara as linhas básicas do bloqueio de Collor e que eu esperava mais medidas, pois “as tensões da economia não se resolverão por conta deste golpe violento e poderão explodir com mais força logo adiante”. Na Carta de Conjuntura do Corecon-SP de janeiro saiu um artigo meu com uma boa descrição do que seria o Plano Collor. Em 1º de março, no Boletim Nacional do PT, voltei a indicar o que Collor anunciaria dias depois.
Em meados de 1988, o Diretório Nacional do PT decidiu elaborar um programa de governo para a candidatura de Lula à Presidência nas eleições marcadas para outubro. Prevalecia a concepção de que a candidatura não seria para ganhar, mas sim para estimular a luta social e a organização popular para uma “ruptura” posterior. Em agosto virei coordenador do Plano Alternativo de Governo (PAG), programa da candidatura de Lula. Cheguei lá por tretas e composições típicas da esquerda, que conhecia bem depois de dez anos de PCdoB, no qual ingressei ainda em Salvador, em 1970, aos 17 anos, e que me expulsou em 1981, e mais seis anos de PT, ao qual me filiei em 1982. Para muitos no PT, inclusive eu, o PAG era Plano de Ação de Governo, e não Plano Alternativo de Governo. A sigla era a mesma, mas cada nome expressava propostas políticas muito diferentes.
O PT surpreendeu nas eleições municipais de 15 de novembro de 1988. Luiza Erundina derrotou Paulo Maluf em São Paulo. O PT ganhou também em Porto Alegre, Vitória, Santos e Campinas, e chegou muito perto em Belo Horizonte. O candidato de Brizola ganhou no Rio de Janeiro. A esquerda estava viva e forte. Ninguém esperava. Lula era a grande novidade e Brizola largava na frente para 1989.
O trabalho de preparação do plano de governo seguia com muitas dificuldades no começo de 1989. Gastava muito tempo conversando com diretórios do partido, militantes, pessoas próximas. Aloizio Mercadante se autointitulava o economista do PT, Lula o tratava como tal, e os dois me ignoravam. Até o fim de 1989, Lula me recebeu quatro vezes, tempo total de três horas e meia, com interrupções para atender ligações e diversas pessoas que entravam na sala.
Havia um buraco evidente: o que propor diante da inflação em alta, da instabilidade cambial, do quadro fiscal. Eu não tinha tempo para me dedicar a nada disso, nem formação suficiente para ter propostas claras. Tive ajuda preciosa de alguns colegas, em especial do Rio de Janeiro, mas não consegui avançar em nada consistente.
Eu defendia que um governo do PT deveria encaminhar mudanças estruturais, não “em direção ao socialismo”, e sim de uma sociedade mais justa e do desenvolvimento em outras bases. O governo não sobreviveria a uma hiperinflação nem a um programa de estabilização antipopular, fosse lá o que fosse isso. E eu não sabia como fazer uma política “popular” contra a inflação depois dos congelamentos frustrados.
Apresentei minhas propostas para a dívida interna e o sistema bancário no seminário PT: Um projeto para o Brasil, em abril de 1989, título do livro da Brasiliense publicado meses depois. No meu texto, analisei estratégias possíveis para a dívida interna: superávits fiscais; privatização; choque com desvalorização; alongamento compulsório; e o que eu defendia: “redução pelos mecanismos de mercado combinados com suspensão do pagamento da dívida externa e retomada do crescimento.”
Eu pensava na negociação de um acordo amplo, termo maldito para a esquerda do PT. Se Lula ganhasse teria autoridade política para isso, inclusive porque seria capaz de levar a CUT e os movimentos sociais para a negociação.
Eu ignorava que isso estava em curso no México, pactos com prefixação de preços e salários, e nada sabia sobre a política gradualista do Chile na fase final da ditadura. Depois encontrei textos acadêmicos de colegas ortodoxos com propostas nessa linha. Economistas moderados do PT pensavam de forma semelhante, como Guido Mantega e Paul Singer, mas eles não discutiam o que deveríamos propor para negociar algum acordo. E o sempre ponderado Singer defendia a estatização dos bancos.
Fez-se enfim o acordo com PCdoB e PSB, expresso no texto Por um governo democrático e popular – Os treze pontos da Frente Brasil Popular. Enorme gasto de tempo em negociações para a redação, em busca de equilíbrios sutis em temas difíceis.
O ponto 4 defendia suspensão imediata “dos pagamentos referentes” à dívida externa, sem distinguir os créditos comerciais, o que foi usado contra nós em áreas do agronegócio, pelos riscos para as exportações. E o ponto 5 detalhava a reforma agrária.
O ponto 6 custou muito trabalho. “O governo da Frente agirá para enquadrar o sistema financeiro especulativo, parasitário.” Para isso, “aumentará o controle sobre o sistema através dos mecanismos legais já disponíveis no BC, recorrendo a várias formas de intervenção, e até à estatização dos bancos, se necessário”. E seguia: “Para reduzir a dívida pública interna, o governo da Frente não permitirá que grandes empresas rentistas continuem lucrando na ciranda financeira e direcionará investimentos para o setor produtivo, favorecendo pequenas e médias empresas, cooperativas e formas de organização comunitária.”
Em setembro, houve uma reunião de economistas da campanha, organizada por Mercadante, para apresentação, um tanto preliminar, da proposta de bloqueio da liquidez por Kandir. Forte reação contrária, minha, de Guido Mantega e de Luiz Carlos Merege, da FGV. O clima pesou. Mercadante ficou contrariado, a reunião acabou mal.
As três semanas finais foram vertigem em overdose. No grupo de economistas era a desordem. Não havia conversas organizadas sobre nada. Passamos a fazer reuniões na antiga sede nacional, fora do Comitê, para evitar a imprensa. Propus a criação de um grupo para elaborar um programa de curto prazo para enfrentar a inflação e os riscos de crise cambial. Não lembro por que, foram indicados Plínio de Arruda Sampaio Junior, o Plininho, Paulo Davidoff, da Unicamp, e Merege. Alguns dias depois, de volta de viagem, perguntei pelos resultados. Merege me disse que os dois haviam sumido. Todo evasivo, Plininho disse que Merege não atendia o telefone. Concluí que preparavam às escondidas o que seria o Plano Collor, com Mercadante e colegas da Unicamp.
No começo de dezembro, pouco antes do segundo e último debate na tevê, decidi entregar o cargo de coordenador do PAG. Em reunião do grupo de economistas, apontei a deslealdade, as reuniões em paralelo, o sumiço de Plininho. Meu sentimento era de tragédia grega, o coro anunciando o que aconteceria se ganhássemos sem saber o que fazer.
Pouco depois ouvi boatos de que Lula escolhera para ministro da Economia o então brizolista César Maia, cada vez mais próximo de posições liberais. Tudo que nós estávamos fazendo era só perfumaria para a campanha. E a campanha estava cada vez mais acirrada.
No sábado anterior ao segundo debate, houve uma reunião preparatória em um sítio perto de Campinas, com Lula e alguns poucos assessores. Passei a manhã na sede, com economistas do PAG, reunindo sugestões a apresentar.
Tenho ainda minhas anotações, datilografadas em uma velha Hermes Baby: “Bater forte em dois temas: (a) defenderemos firmemente as cadernetas e a poupança popular, os recursos dos fundos sociais, as aplicações nos fundos e no over; (b) não daremos nenhum calote nos aplicadores no over, na dívida interna – nunca falamos nisso, nosso adversário nos imputa isso porque quer criar confusão no mercado financeiro, é um irresponsável.” E explicar com detalhes o que seria a moratória da dívida externa, deixar claro que não afetaria créditos comerciais nem o comércio exterior.
Nesse ponto Lula se levantou, agressivo: “Não vou defender isso agora, passei a vida toda defendendo moratória, e agora não vou falar essas coisas…” Fiquei também de pé, agressivo como ele. Entrou a turma do “deixa disso”, em especial Mercadante, tentando recuperar o controle. Insisti que era preciso tranquilizar exportadores e o agronegócio, pensava no interior de São Paulo e do Paraná, regiões em que o PT sofreria derrota decisiva no segundo turno.
No dia seguinte ao debate, agenda complicada em Belo Horizonte. Chovia muito, dificuldades em Confins. Chegamos atrasados à reunião com economistas do PT e da Frente Brasil Popular de Minas Gerais. Falas animadas, muitas propostas. A repercussão do debate em Minas fora muito diferente, convicção de que Lula ganharia.
O último a falar perguntou quais eram as propostas de emergência, para logo depois da posse. Respondi que não havia, e se havia eu ignorava, pois não tinham sido discutidas no grupo de economistas nem na coordenação do PAG. Espanto enorme. Um deles disse que era um absurdo, que nós éramos irresponsáveis. Respondi que não éramos apenas nós, eram irresponsáveis também a direção do PT nacional, o PT de Minas e de outros níveis do partido, que nunca haviam se interessado pelo programa de governo.
A tarde foi bem mais difícil. Reunião em Contagem com empresários e lideranças políticas, em uma sala abarrotada e quente. O Sindicato dos Metalúrgicos era forte e radical, a cidade vivera greves com incidentes violentos. Estava conosco Walter Barelli, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), apresentado como emissário de Lula, ou algo assim. Eu era coadjuvante.
Barelli falou primeiro sobre uma série de platitudes. Uma empresária interrompeu, irritada: “Escutem, quero saber se abro a fábrica na segunda ou não, quero saber o que vai ocorrer se Lula perder; e se ele ganhar e invadirem e ocuparem a fábrica, eu faço o quê?” Atropelei: “Abra a fábrica, se invadirem chame a polícia.” Ela perguntou: “E quem garante que vão me ajudar?” Eu respondi: “Garanto apenas que haverá quem apoie a senhora, eu inclusive, não posso garantir que será suficiente, mas creio que não vai ocorrer nada disso.”
A volta para Confins foi demorada, no carro de um engenheiro do PT, simpático e atencioso. Tentou conversar, mas não rolava. No aeroporto quis falar com Barelli sobre o que ocorrera, mas ele só queria comprar doce de leite e queijo. Fiquei besta. O errado era eu, não havia nada a fazer.
Em São Paulo, friozinho de noites de verão depois de chuva forte. República vazia, luzes de sempre. Subi a Augusta a pé, tudo normal. Putas, pessoas trans, porteiros, seguranças, tipos indefiníveis. Alívio. Sensação estranha. Anos depois, Lula declarou: “Ainda bem que perdi”, pois “não estava preparado para governar”, ou algo assim. A caminhada na Rua Augusta molhada me tranquilizara. Sampa estava certa.
Causou grande surpresa a reação do PT ao anúncio do bloqueio. “Faríamos a mesma coisa. A senhora está de parabéns. Posso garantir que nossa bancada no Congresso fará tudo para aprovar as medidas”, disse Mercadante em debate na Rede Manchete em 18 de março, dois dias depois do bloqueio das contas. A reação do petista deixou a ministra Zélia “assustada”, segundo o Jornal do Brasil do dia 19. Mercadante fez algumas ressalvas, mistura de pequenos poupadores com “grandes especuladores”, criticou medidas fiscais e falta de proteção aos salários.
Em 19 de março, a Comissão Executiva Nacional do PT divulgou nota oficial, em forma de cartaz, dizendo que o pacote beneficiava “exportadores, multinacionais e grandes grupos econômicos”, que era “recessivo” e provocaria “arrocho e desemprego”. E clamava: “É preciso desmascarar o estilo Collor. Da mesma forma que deu o calote na população e confiscou salários, não fará nenhuma devassa”. O PT atacava o Plano Brasil Novo na liberalização da economia. No bloqueio da liquidez, estava de acordo: necessário e indispensável.
Anunciado o bloqueio dos haveres financeiros, minha impressão imediata foi de que daria errado, como se tivesse sido feito por Lula. O clima nas ruas era de desolação. Lojas desertas e calçadas vazias. No último fim de semana de março, porém, a vida pareceu voltar ao normal. O dólar paralelo subiu, a bolsa também. Bares cheios. A liquidez voltara. No começo de abril, poucas empresas usaram a linha de crédito especial em cruzeiros para pagamento de salários.
Quando a inflação voltou aos poucos e o dinheiro disponível deu sinais de crescimento rápido, a culpa foi posta nas “torneirinhas”. O termo depreciativo se referia a exceções abertas para uso de cruzados retidos. Só que a primeira torneirinha foi aberta apenas em 12 de abril, para aposentados, e certamente não foram eles que reanimaram os bares, o dólar paralelo e a Bolsa. Minha reação de esquerdista foi imediata: culpar os pobres é sempre a saída mais simples e sempre indica que há alguma coisa relevante na conduta dos ricos a ser mascarada.
Eu não entendia o que estava acontecendo. Um texto meu na Gazeta Mercantil, em 18 de abril, propunha “refazer as pontes, começando pelas cadernetas”. Poucas vezes estive tão errado. Eu não sabia que a abertura de cadernetas de poupança crescia em abril (os números foram divulgados muito depois). O bloqueio não atingira a maioria das pessoas, animadas com a queda da inflação. Estava muito errada minha hipótese de que o bloqueio iria desorganizar a economia e provocar oposição tão forte que seria logo abandonado. A queda da economia foi bem menor do que se esperava e só se aprofundou em meados do segundo semestre, quando voltaram a inflação e as políticas recessivas anteriores.
O bloqueio derrubou de imediato a inflação elevada e em aceleração, na faixa de 80% mensais, para menos de 10% nos meses seguintes, mas em dezembro estava já próxima de 20% ao mês. Durou alguns meses a tentativa de estabilização com bloqueio da liquidez. Até meados de maio, com a rápida monetização, o medo de recessão catastrófica passou para o medo de descontrole e de volta da inflação. No final de maio a política monetária e a política cambial voltaram aos padrões característicos dos anos anteriores e a recessão se aprofundou. O PIB fechou 1990 com queda de 4,35%.
Decidi que o Plano Collor seria o tema de meu doutorado, que eu iniciara na Unicamp em fevereiro. Queria entender o que ocorria, por que eu tinha me equivocado tanto. Tracei quatro linhas de pesquisa: racionalidade das medidas, em que se baseavam e quais seus laços com o debate econômico brasileiro; precedentes históricos; como a equipe de Collor tinha chegado à proposta; e por que a liquidez se recompôs tão rápido.
Houve dezenas de casos de bloqueio de liquidez no século XX, a maioria deles em meio a hiperinflações e ao fim das duas grandes guerras. Os objetivos variaram muito e as medidas adotadas também: limitação do uso de cédulas ou de depósitos nos bancos para pagamentos, troca compulsória de cédulas, alongamento dos prazos de aplicações financeiras, cancelamento puro e simples. Em alguns casos, uma ou outra, em outros o conjunto inteiro.
Bloqueio da liquidez é a designação mais abrangente para medidas que envolvem a suspensão parcial ou total, temporária ou definitiva, do direito de fazer uso da moeda e de aplicações financeiras.
Ao lado da rentabilidade e da segurança, a liquidez é um dos atributos dos diferentes ativos, as formas de riqueza que pessoas e empresas possuem – cédulas de dinheiro, depósitos em bancos, ações, imóveis etc. Grau de liquidez de um ativo é a possibilidade que tem seu proprietário de transferir seu valor para outro ativo, o que requer transformá-lo em dinheiro, por venda ou por resgate no banco. A venda requer tempo e pode implicar alguma perda de valor: o grau de liquidez mede a facilidade de vender sem perder valor. Os ativos se diferenciam também pela segurança e pela rentabilidade que oferecem.
Um imóvel tem segurança elevada: seu valor oscila pouco e é muito difícil perdê-lo se estiver legalizado. O rendimento é razoável e previsível, mas a liquidez é muito baixa: é difícil vender rápido sem baixar muito o preço desejado. No outro extremo, cédulas de dinheiro e depósitos em contas bancárias têm liquidez total, pagam qualquer coisa a qualquer momento, mas não têm rendimento. As cédulas têm valor nominal fixo, impresso no papel e não rendem juros, da mesma forma que os depósitos à vista, mas perdem valor real se houver inflação, seu poder de compra se reduz.
Em 8 de novembro de 2016, caso recente, o governo da Índia “desmonetizou” as cédulas de 500 e 1.000 rúpias, equivalentes a 25 e 50 reais na época. As cédulas perderam valor legal para transações e deveriam ser depositadas até 30 de dezembro em contas bancárias para troca por cédulas novas. Havia 200 ou 300 milhões de adultos sem contas em bancos, a serem abertas em quarenta dias. Feito o depósito, o saldo ficaria disponível para emissão de cheques ou transferências, mas o saque de novas cédulas teria pequenos limites diários. O objetivo era impor o uso de contas nos bancos, para eliminar cédulas falsas, supostamente impressas por grupos terroristas, reduzir a economia informal e permitir a tributação dos negócios.
A troca das cédulas de rúpias lembra o que foi feito em países da Europa após a Segunda Guerra. Na França libertada circulavam cédulas anteriores à guerra, cédulas do governo de Vichy, reichsmarks alemães, dólares e libras. A troca compulsória por cédulas novas de franco ajudaria a reorganizar a economia e a identificar colaboracionistas e criminosos: cédulas de valor elevado ou grandes volumes de cédulas menores requeriam explicações sobre sua origem e grande parte delas não foi apresentada.
Um ano antes da criação da República Federal da Alemanha, em 1949, os três países ocupantes (Grã-Bretanha, França e Estados Unidos) promoveram uma reforma monetária: foi declarada sem valor a antiga moeda do regime nazista e foram considerados nulos os títulos financeiros do Reich alemão, um caso de repúdio total da dívida pública. A nova moeda, o Deutsche Mark, foi distribuída a algumas empresas de serviços públicos, como as ferrovias, e entregue às pessoas segundo critérios que nada tinham a ver com a troca dos reichsmarks em sua posse, como o número e a idade dos filhos.
No começo de dezembro de 2001, o governo da Argentina proibiu o saque de depósitos de pessoas e empresas em todas as contas em bancos. Até então, saques podiam ser feitos em dólares ou em pesos, sem depender da moeda em que foram depositados. Com a desconfiança de que o governo ficaria sem dólares, começou a onda de saques. Quem não tirou a tempo ficou preso no chamado corralito, o curralzinho. Nada aconteceu com as cédulas de pesos, que continuaram circulando.
O Plano Collor surgiu do debate sobre como acabar de vez com a inflação alta, persistente e em crescimento desde o final dos anos 1970. A proposta de bloquear a liquidez dos ativos financeiros ligava-se a esse debate por três vertentes, três questões a serem resolvidas.
A primeira era o salto do consumo em caso de queda brusca da inflação, como no congelamento de preços do Plano Cruzado, em 1986. Sem a inflação alta, a renda real dos mais pobres cresceu de imediato e permitiu o consumo reprimido. Os bancos expandiram o crédito, para recompor a receita que tinham com os juros muito altos, o que reforçou o consumo. Faltaram produtos básicos, os sinais de inflação voltaram. O salto do mercado interno atraiu importações e reduziu exportações, vieram pressões no câmbio, especulação e desvalorização do cruzado, inflação de volta. Os congelamentos perdiam eficácia, como mostrou o malfadado Plano Verão, de janeiro de 1989.
A segunda vertente era a elevada liquidez das aplicações no over, chamadas de moeda indexada, uma impropriedade. Indexação indicava correção automática de valores por um índice de preços ou um índice definido pelo governo. Depósitos no over recebiam os juros diários fixados pelo BC e ficavam disponíveis no dia seguinte. Eram um abrigo para a moeda, mas não eram moeda. Não se podia pagar nada com aplicações no over: para isso o banco deveria convertê-las em moeda do BC, o cruzado novo, e lançar o valor na conta do cliente. Pagamentos eram feitos com cheques sobre as contas correntes, contando que os bancos fariam resgate do valor no over para pagar o cheque. A conversão parecia automática, mas o banco precisaria ter acesso a cruzados novos, um montante bem menor que o total de aplicações no over. Se a conversão fosse bloqueada, as aplicações não serviriam para pagar nada.
Economistas da Unicamp chamavam o over de moeda especulativa, por permitirem a realização de operações especulativas a qualquer momento. Este “circuito especulativo” deveria ser interrompido, bloqueado, até que o “circuito produtivo” da moeda fosse “normalizado” e permitisse levar a “moeda especulativa” para a produção. Porém, no over estavam também o caixa das empresas, salários, reservas de pessoas e empresas.
A terceira vertente estava relacionada à precariedade do financiamento da dívida pública no over. Era preciso convencer as pessoas a comprarem títulos públicos de médio prazo que não pudessem ser convertidos em moeda sem custo e de imediato, como no over, mas ninguém faria isso naquele momento. Não se tratava de reduzir a dívida, e sim de encontrar compradores para títulos sem liquidez diária. Seria preciso bloquear o over até haver aplicadores para títulos de médio e longo prazo.
O único texto oficial de justificativa do bloqueio é a Exposição de Motivos 58 que apresentou a Medida Provisória 168. E a Gazeta Mercantil (17/3/1990, p. 32) transcreveu trechos do discurso de Collor e de Zélia no anúncio do plano.
A EM 58 e as palavras dos dois têm coincidências literais com o texto Crise e reforma monetária no Brasil, de Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp, e Júlio Gomes de Almeida, publicado em abril de 1990, na revista São Paulo em Perspectiva, da Fundação Seade. Depois de fundamentar a necessidade do bloqueio, o artigo propõe medidas quase idênticas às que foram adotadas, com diferenças. Haveria liberação mensal de 300 mil e poderia haver conversão para compra de títulos vinculados a investimentos produtivos, privatização e imóveis.
Considero que o artigo é a única exposição do diagnóstico que orientava o plano. Deve ter sido escrito meses antes. Anos depois, perguntei a Belluzzo e a Gomes de Almeida, em separado e em ocasiões diferentes, se tinham ajudado a formular o bloqueio de Collor. Eles disseram que o texto fora escrito com propósitos acadêmicos em 1988-89 e não sabiam se teria influenciado a equipe de Zélia.
Conversei com Zélia em 2009, em seu apartamento na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ela contou que Belluzzo estava na reunião com um grupo pequeno de economistas em Brasília nas vésperas da posse quando a equipe de Collor apresentou as medidas. Teria havido concordância geral e foram sugeridos ajustes, mas ela não lembrava quais. Belluzzo teria ficado lá à noite, isolado, redigindo a exposição de motivos e a medida provisória.
Entre 1992 e 1994, em momentos diferentes, entrevistei José Francisco de Lima Gonçalves e Luís Eduardo Assis, que eu conhecera muito antes e que estiveram na equipe de Zélia desde o começo da campanha. Os dois disseram ter chegado à proposta de bloqueio cada um por sua própria reflexão, na segunda metade de dezembro de 1989.
Segundo eles, até novembro o grupo trabalhara propostas de prefixação de preços e negociação com setores da sociedade. No início de dezembro, um deles propôs não fazer nada logo depois da posse, mas a proposta foi rechaçada. Passou-se à ideia de aplicar um imposto “cavalar” sobre os haveres financeiros, abandonada pelo receio de que a parcela restante detonasse uma onda de consumo e compra de dólares. O grupo discutiu o bloqueio pela primeira vez no final de dezembro e cada um ficou aliviado com a concordância dos demais. Depois entrevistei Ibrahim Eris, incorporado à equipe em janeiro de 1990. Todos negaram minha hipótese de que a proposta de Belluzzo teria sido considerada por eles.
É possível que eu esteja errado e eles tenham mesmo chegado sozinhos à proposta, como muitos vinham chegando à época, inclusive eu. Todos negaram também que tivessem seguido o bloqueio na Argentina, tema diário dos jornais brasileiros de então. Não é crível que o drama argentino passasse despercebido. E lá foram criadas às pressas medidas de administração do bloqueio, como as permissões para pagamentos com a moeda retida. O forte envolvimento com o processo em curso pode ter esmaecido lembranças daquele período. Eu também não me lembrava e certamente não me lembro de muita coisa.
Os três – Gonçalves, Lima e Eris – disseram que a inclusão das cadernetas foi decidida perto do bloqueio, pouco antes de pedirem o feriado bancário em 13 de março. Ficou famosa a versão de que o valor de 50 mil cruzados foi decidido por sorteio em uma festinha da equipe.
Entrevistei Collor em seu gabinete no Senado em agosto de 2008. Quando liguei pedindo para ser recebido, a secretária disse que o senador não dava declarações nem entrevistas sobre o tema. Argumentei que era professor e publicara dois artigos acadêmicos a respeito, pediu que enviasse. Dois dias depois ligou de volta e marcou.
Collor me recebeu em pé, atrás da mesa, formal e cortês. Sentou-se e começou logo a falar com segurança, sem muito espaço para me ouvir, interessado em dar sua versão. Segundo ele, no final de 1989 a decisão já era pelo “enxugamento da liquidez”, mas não incluía as cadernetas, e que apelara para isso no debate para intimidar Lula e se defender de possível pergunta a respeito. Lembrou que Ibrahim Eris colocou logo a escolha entre “cautela ou choque”.
A opção por “fazer tudo de uma vez” foi tomada em parte por seu temperamento, mas procurou ouvir economistas e técnicos. Recebeu Mário Henrique Simonsen no início de fevereiro, com André Lara Resende e Daniel Dantas, conversa que o deixou convencido de que o caminho era o bloqueio. Simonsen mostrou que todas as alternativas eram inviáveis devido à liquidez dos haveres financeiros. Lara Resende perguntou se controlar a liquidez era tecnicamente viável, Simonsen respondeu que sim, mas que era inviável politicamente. Lara Resende insistiu, segundo Collor: “E se controlar politicamente?” Resposta de Simonsen: “Aí dá para fazer.” Daniel Dantas ficou muito incomodado, reagiu de forma agressiva, e Collor perguntou a ele: “O que o mercado espera de meu governo?” A resposta foi: “Tanto faz, o mercado sempre se antecipa e ganha.”
O bloqueio da liquidez não atingiu seu objetivo maior: impedir que, depois da queda da inflação, a monetização da economia se desse da forma rápida e desordenada que teria causado o fracasso dos programas anteriores. Por que a liquidez se recompôs com tanta rapidez e facilidade? Essa era a principal questão a esclarecer.
Havia duas hipóteses. A primeira era que o ritmo de crescimento da quantidade de moeda e do crédito se tornara inevitável por causa da própria concepção do plano, da natureza das medidas e das condições da economia brasileira. A segunda era que o processo escapou ao controle e se acelerou devido a erros de condução do programa, como a incapacidade política de resistir às pressões para afrouxamento das regras.
Eu queria demonstrar a primeira hipótese. A imprecisão dos dados nas publicações do BC era um grande obstáculo, com valores muito altos lançados em “outras contas”, sem notas explicativas. O debate público era pouco esclarecedor, muito enviesado. O apoio inicial se transformara em críticas contundentes.
A análise do que ocorreu nos primeiros sessenta dias do Plano Collor mostrou peso bem maior de fatores inerentes ao próprio bloqueio, à proposta básica de separar os dois “circuitos” da moeda, ou seja, bloquear a dita moeda indexada e especulativa e permitir que a economia funcionasse até se “normalizar”. O fracasso não foi por equívocos na condução do programa.
O descontrole da monetização ocorreu no sistema bancário. Era inevitável o grande tumulto na atividade dos bancos logo após o bloqueio, inclusive por ser impossível detalhar a tempo regras operacionais de um plano elaborado em sigilo. Dois anos depois entrevistei Eduardo Nakao, chefe da mesa de operações do BC. Ele disse que soube do bloqueio pela televisão e teve apenas o fim de semana para montar o esquema operacional para o sistema abrir na segunda, como Collor prometera no anúncio do plano.
Bancos que oferecem depósitos à vista e processam pagamentos são obrigados a manter contas no BC, as contas de reservas, ou reserva bancária. Por meio delas transferem dinheiro entre si, liquidam operações de câmbio, recolhem impostos, fazem pagamentos do Tesouro ao público. O BC monitora essas contas em tempo real, verifica a demanda por moeda e câmbio e decide como manter a taxa desejada, a taxa Selic, dando crédito aos bancos ou vendendo a eles títulos e dólares. Foi preciso criar um sistema novo, em moeda retida, para operar ao lado do anterior, convertido para a moeda liberada.
O sistema duplo travou em menos de uma hora na segunda-feira. Os bancos passaram a operar às cegas, sem conhecer sua posição na reserva bancária, ou seja, sem conhecer seu caixa e sem conseguir processar informações sobre a posição de cada cliente. Com receio de pânico caso um banco não conseguisse atender saques ou validar pagamentos, o BC optou por colocar na conta de reserva de cada banco o montante que o próprio banco informava. Era o financiamento involuntário do BC aos bancos, o oposto do que o bloqueio pretendia.
Com a disponibilidade de recursos do BC, os bancos puderam refinanciar dívidas e dar crédito, na nova moeda e nos valores retidos. Um planejamento mais cuidadoso e eficaz do bloqueio não teria evitado a ocorrência de problemas semelhantes. Os bancos teriam que receber financiamento do BC, a menos que se impedisse o saque dos cruzeiros liberados. A economia teria que ser monetizada de alguma forma. Essa necessidade se impôs pela ameaça de paralisia dos negócios, como nos primeiros dias, e como na Argentina no início de janeiro.
Um dos fundamentos do Plano Collor era a convicção de que, com o bloqueio da liquidez, o BC recuperaria o controle da oferta de moeda e organizaria sua reintrodução, separando moeda para transações e moeda para especulação. Os dias seguintes ao bloqueio mostraram que essa separação é impossível.
Há outras interpretações, claro. Uma delas aponta para Estados e municípios, autorizados a utilizar em cruzeiros valores de impostos recebidos em cruzados retidos. Teria havido fraudes e irregularidades. Não é crível que tenham sido relevantes diante da necessidade de pagar salários e fornecedores, o que provocaria uma crise de proporções imprevisíveis. E pagar salários e professores seria gasto de moeda “produtiva” que os autores do programa pretendiam estimular.
Já foi dito inúmeras vezes que a vitória tem muitos pais e a derrota é órfã. Os defensores do Plano Collor recuaram primeiro para o silêncio e depois para críticas agressivas. Alguns opositores de primeira hora aderiram ao governo logo que chamados, apesar do bloqueio, atraídos pelas políticas liberalizantes. Belluzzo, Almeida e Luciano Coutinho, também da Unicamp, foram à imprensa, tentando relativizar as dificuldades e o fracasso evidente. Logo também estes se recolheram ao silêncio.
Seguiu-se a criação da mitologia que prevalece até hoje. O Plano Real teria dado certo por não ter feito nada em segredo. O bom-mocismo esconde a forte mudança no mercado financeiro internacional. O Plano Collor enfrentava a inadimplência externa do Brasil e da maior parte da América Latina, o que tornava inviável aguentar o salto da demanda interna e a queda dos saldos comerciais, problema que inviabilizara o Plano Cruzado e outros programas do Brasil e da Argentina. Os mercados internacionais mudaram, o crédito do Brasil voltou e se manteve durante o impeachment de Collor, apesar da incerteza sobre o que seria o governo de Itamar Franco. Foi possível financiar o enorme déficit comercial do segundo semestre de 1994, o que garantiu os objetivos do Plano Real.
Os mitos incluem acusações de que o bloqueio foi uma aventura tirada do nada, sem base nenhuma, invenção de Collor, o impulsivo, e de Zélia, a aventureira. E a acusação de que Lula pretendia bloquear cadernetas e overnight teria sido apenas mais uma calúnia e torpeza dentre as muitas que marcaram sua campanha.
noticia por : UOL