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Cuiaba - MT / 3 de março de 2025 - 10:06

Por que estamos perdendo a capacidade de ler livros

Ao longo de três anos, Hari entrevistou especialistas no tema e descobriu que a incapacidade de nos mantermos focados não é uma falha individual, mas o resultado de influências externas poderosas que “roubam” nosso foco.

No trecho a seguir, o autor explora como a transição da leitura profunda de livros para o consumo superficial de informações digitais está afetando nossa capacidade de atenção e compreensão.

Há uma incrível livraria no extremo oeste de Provincetown [vila na ponta do Cabo Cod, no estado americano do Massachussetts], que se chama Tim’s Used Books. Você entra e, na mesma hora, inala os eflúvios intensos que vêm daqueles livros antigos empilhados por toda parte.

No verão, eu ia lá quase que diariamente para comprar mais um livro para ler. Havia uma jovem que trabalhava no caixa, muito inteligente, e ficava batendo papo com ela. Toda vez que ia lá, eu notava que ela estava lendo um livro diferente — um dia Vladimir Nabokov ou Joseph Conrad, outro dia Shirley Jackson.

“Uau”, eu disse, “você lê rápido”. “Ah”, ela respondeu, “que nada! Não leio rápido, não. Só consigo ler o primeiro capítulo ou os dois primeiros”. Perguntei: “É mesmo? Por quê?”. Ela respondeu: “Acho que não consigo me concentrar”.

Ali estava uma jovem inteligente, com farto tempo disponível, rodeada por muitos dos melhores livros já escritos e com vontade de lê-los — mas que só ia até o primeiro ou segundo capítulos, e então sua atenção pifava, como um motor avariado.

Perdi a conta das inúmeras pessoas que conheço e que dizem a mesma coisa.

Quando conheci David Ulin, crítico de livros e editor do Los Angeles Times por mais de 30 anos, ele contou que havia perdido a capacidade de ler com profundidade por longos períodos. Porque toda vez que tentava isso era atraído de volta para a empolgação das conversas on-line.

É um homem incrivelmente inteligente, cuja vida girou em torno de livros. Achei desconcertante.

A proporção de norte-americanos que leem livros por prazer está agora no nível mais baixo já registrado. O American Time Use Survey [Levantamento Americano do Uso do Tempo] — que estuda uma amostra representativa de 26 mil pessoas — descobriu que entre 2004 e 2017 a proporção de homens que leem por prazer caiu 40%, e a de mulheres teve redução de 29%.

A empresa Gallup, de pesquisas de opinião, descobriu que a proporção de norte-americanos que nunca haviam lido um livro em um ano qualquer triplicou entre 1978 e 2014. Cerca de 57% dos norte-americanos agora não leem um livro sequer em um ano típico. Isso escalou a ponto de por volta de 2017 o norte-americano médio passar 17 minutos por dia lendo livros e 5,4 horas ao telefone.

Quem sofreu mais foi a ficção literária complexa. Pela primeira vez na história moderna, menos da metade dos norte-americanos leem literatura por prazer.

O tópico foi menos estudado na Grã-Bretanha, mas parece que as tendências são similares ali e em outros países: entre 2008 e 2016 o mercado para romances caiu 40%. Em um único ano — 2011 —, as vendas de livros de ficção em brochura caíram 26%.

Mihaly Csikszentmihalyi [psicólogo húngaro-americano, criador do conceito de fluxo, um estado mental altamente focado] constatou em sua pesquisa que uma das formas mais simples e comuns de fluxo que as pessoas experimentam na vida é ler um livro — e, como outras formas de fluxo, essa também tem sido barrada em nossa cultura de constante dispersão.

Pensei muito sobre isso. Para muitos de nós, ler um livro é a forma de foco mais profunda que experimentamos — você dedica muitas horas de sua vida, tranquilas, calmas, a um assunto e permite que ele fique marinando na sua mente.

É o recurso por meio do qual a maioria dos avanços no pensamento humano, ao longo dos últimos 400 anos, têm sido elaborados e explicados. E essa experiência está agora em queda livre.

Crise de atenção

Em Provincetown, notei que não só lia mais — mas lia de um jeito diferente. Ficava em uma imersão muito mais profunda nos livros que havia escolhido ler. Perdia-me neles por intervalos de tempo realmente longos, às vezes dias inteiros — e senti como se estivesse entendendo e relembrando mais aquilo que lia.

Era como se naquela cadeira de praia junto ao mar, lendo um livro atrás do outro, viajasse mais longe do que nos cinco anos precedentes de deslocamentos frenéticos ao redor do mundo: ia dos campos de batalha das guerras napoleônicas ao Sul Profundo dos Estrados Unidos, lendo sobre a vida de uma pessoa escravizada, ou via-me como uma mãe israelita tentando não saber da notícia da morte do filho.

Conforme refleti sobre isto, lembrei-me de novo de um livro que havia lido dez anos antes: “A Geração Superficial”, de Nicholas Carr [jornalista e escritor americano], uma obra de referência que alertou as pessoas para um aspecto crucial da crescente crise de atenção.

Ele advertiu que nossa maneira de ler parece estar mudando à medida que migramos para a internet — e então pesquisei um dos principais nomes nos quais ele se apoiou, a fim de ver o que havia sido aprendido desde então.

Anne Mangen é professora de letramento na Universidade Stavanger, na Noruega, e explicou que em duas décadas de pesquisas sobre o assunto comprovou algo crucial. Ler livros é algo que nos treina a ler de uma maneira particular — linear, focada em uma só coisa por um período sustentado de tempo.

Ler a partir de telas, foi o que ela descobriu, nos treina para ler de outra maneira — pulando e passando maniacamente de uma coisa à outra. Os estudos dela concluíram que quando lemos em telas “é mais provável que fiquemos escaneando e lendo superficialmente” — correndo os olhos rapidamente pela informação para extrair o que precisamos.

Mas, segundo ela, depois de fazer isso por uma extensão de tempo suficiente “esse escaneamento e leitura superficial transborda. Começa a colorir ou a influenciar o jeito como lemos em papel… Esse comportamento também se torna de certo modo o nosso padrão”.

Leitura contaminada

Foi justamente o que notei quando tentei mergulhar em Dickens logo ao chegar a Provincetown e me vi apressado, querendo ultrapassá-lo, como se o texto fosse um artigo de notícia e eu quisesse saber logo os fatos principais.

Isso cria uma relação diferente com a leitura. Ela deixa de ser uma forma de imersão prazerosa em outro mundo e se torna uma corrida dentro de um supermercado lotado para você pegar o que precisa e sair logo de lá.

Quando essa virada acontece — quando sua leitura em tela contamina a leitura em papel —, perdemos um pouco dos prazeres de ler os livros, e eles se tornam menos atraentes. Isso gera outro efeito em cadeia.

Anne realizou estudos nos quais dividiu pessoas em dois grupos, dando a um dos grupos informações em livro impresso e ao outro as mesmas informações em telas. Perguntaram então a todos o que haviam acabado de ler.

Nesse tipo de situação, você descobre que as pessoas compreendem e se lembram menos daquilo que absorvem em telas. Existe hoje ampla evidência científica disso, a partir de estudos, e ela explicou que o tópico é referido como “inferioridade de tela”.

Essa lacuna na compreensão entre livros e telas é grande o suficiente para que em crianças do ensino elementar seja equivalente a dois terços de um ano no desenvolvimento da compreensão da leitura.

Enquanto ela falava, percebi que, de certo modo, essa queda no índice de leitura de livros é sintoma da atrofia da nossa atenção e que também pode ser uma de suas causas. É uma espiral — conforme passamos de livros para telas, vamos perdendo um pouco a capacidade de ler em profundidade que é própria dos livros, e isso, por sua vez, reduz nossa probabilidade de ler livros.

É como quando você ganha peso e por essa razão sente cada vez maior dificuldade para se exercitar. Como resultado, Anne contou que sua preocupação era que acabássemos perdendo de vez “nossa capacidade de ler textos longos”, e também a nossa “paciência cognitiva… [e] o vigor e a capacidade de lidar com textos desafiadores no aspecto cognitivo”.

Quando estava em Harvard realizando entrevistas, um professor me contou que precisava fazer o maior esforço para que seus alunos lessem até mesmo livros muito curtos, e que cada vez mais lhes indicava podcasts e vídeos do YouTube para assistir. E estamos falando de Harvard.

Comecei a tentar imaginar o que será de um mundo em que essa forma de foco profundo encolhe tanto e tão rápido. O que acontecerá quando essa camada mais profunda de pensamento se tornar disponível a um número muito menor de pessoas, até virar o interesse de uma pequena minoria, como ocorre com a ópera ou o voleibol?

noticia por : Gazeta do Povo

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