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Cuiaba - MT / 18 de janeiro de 2025 - 19:03

Por que Hollywood agora vê um aliado em Donald Trump e atores estão todos calados

As chamas que consomem Los Angeles se tornaram uma metáfora involuntária para uma ameaça que cerca Hollywood, símbolo máximo da cidade. Com a volta de Donald Trump à Casa Branca, nesta segunda-feira, as maiores estrelas do mundo, que declararam guerra a ele ao apoiar Kamala Harris, estão na mira do presidente e do Congresso, formado em sua maioria por conservadores.

Trump já escalou seu time para essa batalha —Jon Voight, Mel Gibson e Sylvester Stallone, que são conhecidos pelos machões que encarnaram nas telonas e estão entre os poucos atores do lado do presidente. “Eles serão meus enviados especiais a esse lugar muito importante, mas muito problemático, que é Hollywood”, disse Trump. “Serão meus olhos e ouvidos lá, e eu farei o que sugerirem.”

Mas a relação entre a classe artística e o republicano não será como em seu primeiro mandato. Se antes as estrelas respondiam ao que acontecia em Washington com discursos de ataque ao presidente, sobretudo nos palcos de premiações, desta vez elas já sinalizaram que devem ficar caladas.

Prova disso é o Globo de Ouro, que aconteceu no início do mês. Exceto por uma breve piada feita pela apresentadora Nikki Glaser, não houve menção a Trump na cerimônia, diferentemente do que aconteceu há oito anos, quando Meryl Streep fez uma série de críticas à sua primeira vitória nas urnas com um discurso de seis minutos. Aquela, disse a atriz, era uma reunião “dos segmentos mais vilanizados da sociedade americana”, “a imprensa e os estrangeiros”. No ano retrasado, ainda, a premiação exibiu um discurso do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, sobre a invasão de seu país pela Rússia.

Nos bastidores, o último Globo de Ouro é visto como um indicativo não só de como serão o Oscar e outras premiações, mas da relação dos artistas com a política em geral —mesmo entre aqueles que doaram milhões de dólares aos democratas, participaram de seus comícios e fizeram campanha nas redes sociais.

O receio de fazer provocações a Trump, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, é o de agravar a crise que castiga Hollywood desde a pandemia, um cenário diferente de 2016, quando Trump venceu pela primeira vez. Desde então, a bilheteria do cinema acumula uma queda de 42% na sua arrecadação anual pelo mundo. Antes, também não havia uma disputa por atenção tão acirrada entre os cinemas e as plataformas de streaming, enquanto hoje a alta concorrência entre elas próprias faz o vídeo sob demanda ser um negócio que, não raro, dá prejuízo.

Mais próxima do Vale do Silício, Hollywood está mais dependente do governo para enfrentar desafios como a regulação da inteligência artificial, pivô das greves dos atores e dos roteiristas no ano retrasado, e os mercados estrangeiros, entre eles o do Brasil, que agora representam uma ameaça com os esforços para proteger sua própria produção audiovisual.

Para ter o apoio de Washington, Los Angeles não só precisará evitar ataques ao presidente, mas se alinhar à sua pauta comportamental de viés conservador. Assim, o cinema feito nos Estados Unidos pode ficar mais careta e se fechar a histórias de imigrantes, negros e membros da comunidade LGBT, afirmam pessoas próximas à indústria, em condição de anonimato. Essa visão é amparada por pesquisas de mercado, às quais o New York Times teve acesso, dizendo que o público agora desliga a TV quando os atores começam a falar de política em premiações.

É um cenário parecido com o que tem acontecido na televisão brasileira desde a ascensão de Jair Bolsonaro, do PL, e seu discurso conservador. Se há uma década a Globo exibia atrizes do calibre de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg se beijando na boca logo no primeiro capítulo de uma novela das nove, hoje a emissora vive sob acusações constantes de ter mandado cortar beijos e relacionamentos gays de suas histórias —o que seus executivos negam.

Isso já tem acontecido nos Estados Unidos, a exemplo de trabalhos mesmo de atores que são ativistas, como George Clooney. Seu último filme, “Lobos Solitários”, com Brad Pitt, é uma ação sem nenhum matiz político, diferente das obras que fazia no passado, como “Boa Noite e Boa Sorte”, de duas décadas atrás, que retratava o confronto entre um âncora de telejornal e um senador que caçava comunistas.

Esses atores, que têm tanto poder quanto os próprios estúdios, estão preocupados com a inteligência artificial. A classe artística saiu vencedora dos piquetes do ano retrasado, mas os acordos vencem no ano que vem, e tudo o que foi conquistado pode ser posto em xeque, com o avanço de ferramentas como o ChatGPT.

Hoje, os estúdios não podem usar inteligência artificial para escrever ou editar roteiros nem para pensar a ideia de uma história. Também é proibido treinar as máquinas com filmes do acervo. Mas essas empresas já têm permissão para reproduzir o corpo e a voz dos atores, dispensando suas diárias de trabalho, caso eles concordem e aceitem a oferta paga pelo uso de sua imagem.

Essa prática já é comum em Hollywood, a exemplo do longa-metragem “Aqui”, que acaba de chegar aos cinemas e acompanha a trajetória de várias pessoas que habitaram uma mesma casa em diferentes momentos. Sob a direção de Robert Zemeckis, de “Forrest Gump”, Tom Hanks e Robin Wright passaram por uma plástica virtual e tiveram seus rostos rejuvenescidos em várias décadas.

Enquanto eles atuavam, o diretor já os via rejuvenescidos nas telas do set, graças a uma tecnologia que havia sido treinada, antes das filmagens, com imagens da dupla extraídas de seu acervo, sobretudo dos filmes que fizeram quando jovens.

Hanks e Wright trabalharam normalmente e ganharam por isso, assim como Zemeckis, que sempre esteve na vanguarda do uso da tecnologia na sétima arte. No entanto, para os funcionários mais vulneráveis da indústria, esse filme soou como um presságio do drama que vão enfrentar.

Artistas em início de carreira que teriam sido contratados para interpretar Hanks e Wright em outras fases da vida ficaram sem emprego, assim como tem acontecido com os dublês —eles têm sido substituídos por atores que só existem no computador em cenas como as batalhas da franquia “Game of Thrones”, que já estão gerando suas multidões de guerreiros por meio da tecnologia.

Até mesmo os mortos estão em perigo na indústria atual. No estado americano da Califórnia, a regulação da inteligência artificial está mais avançada. Em setembro do ano passado, o governador democrata Gavin Newsom sancionou uma lei que proíbe os estúdios de ressuscitar celebridades já mortas para novos filmes ou séries sem a autorização de sua família. No entanto, mesmo num mundo em que qualquer produção circula com facilidade por todo lado, essa prática é permitida em outras regiões.

Comum nos Estados Unidos, essa diferença de leis em cada estado mostra o motivo pelo qual as estrelas, mesmo vivendo num oásis democrata, sabem que não estão imunes às investidas da oposição. Existem 120 projetos de leis para definir as regras do uso dessas novas tecnologias. Acontece que, no fim, os que forem aprovados pelo Congresso serão submetidos ao escrutínio de Trump, e suas decisões prevalecem sobre as dos governadores.

Em geral, os republicanos têm sido contrários à regulação, dizendo que ela pode frear o avanço da tecnologia, essencial para manter a supremacia americana —dois terços dessas iniciativas em Washington, por exemplo, são dos democratas, segundo levantamentos da faculdade de direito da Universidade de Nova York e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

É por isso que os donos de big techs, como Mark Zuckerberg, do Facebook e do Instagram, e Elon Musk, do X, têm se alinhado e doado a Trump, assim como Jeff Bezos —dono da Amazon e, portanto, do Prime Video— e de Tim Cook —CEO da Apple, que controla o Apple TV+.

Bezos e Cook são exemplos de que os executivos da tecnologia mandam cada vez mais no entretenimento. É ela, afinal, que orienta os serviços de streaming, até na concepção das histórias, com algoritmos que analisam o gosto do público e sugerem investimentos mais certeiros.

A impressão é a de que os chefões de Hollywood já previam esse cenário. Exceto pelo presidente da Netflix, Reed Hastings, que apoiou Kamala Harris, eles se mantiveram neutros. Nem Bob Iger, CEO da Disney que apoiou Hillary Clinton e Joe Biden, tomou partido desta vez, depois de a empresa se envolver em uma briga com o governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis, que pôs em risco o império de parques temáticos responsável por 36% de sua receita. Tudo por causa de uma crítica a uma lei que restringiu o debate de sexualidade nas escolas.

Os executivos da Califórnia sabem que Trump pode prejudicar os negócios. Mesmo que seu discurso seja em prol da economia, o presidente atacou empresas que via como ameaça. Foi o caso da Time Warner, que o republicano tentou impedir de se juntar à operadora telefônica AT&T. As fusões, que são comuns em Hollywood e podem voltar a acontecer, com a união da Warner com a Paramount, precisam ser autorizadas pelo governo federal, já que podem ameaçar a livre concorrência.

Os engravatados não estão sozinhos em seu alinhamento com Trump. A parceria com Voight, Gibson e Stallone mostra que o presidente, que fez fama como apresentador, tem aliados mais fortes na indústria audiovisual do que em outras áreas do showbusiness, como a música. Tudo o que ele conseguiu para cantar na sua posse foi a série B —o grupo Village People, presos ao sucesso que fizeram há quase 50 anos, e a cantora country Carrie Underwood, que não figura nem entre as 50 estrelas mais famosas do gênero, segundo o ranking da Billboard, revista especializada em música.

Mas essas não são as únicas ligações de Los Angeles com Washington. A indústria é de fato autossuficiente em termos comerciais e não depende do governo para bancar a produção de filmes e séries. Os políticos, no entanto, já usaram o cinema para imprimir a inimigos como a China e a Rússia, por exemplo, a pecha de expansionistas desequilibrados. Eles sabem que suas histórias podem aumentar a influência americana pelo mundo, com o chamado “soft power“.

Para levar sua ideologia de consumo adiante e despertar nos estrangeiros o desejo de comprar produtos americanos, o governo, desde a década de 1920, apoia Hollywood, que se organizou em instituições especializadas em representar o interesse dos estúdios entre os políticos. Hoje, o cinema e a televisão, que figuram entre as dez maiores indústrias do país, gera 544 mil empregos diretos e movimenta US$ 229 bilhões por ano, segundo a Motion Pictures Association.

Para atingir este nível de sucesso, uma das principais iniciativas do governo foi ajudar os estúdios a expandir sua presença pelo mundo, afirma Pedro Butcher, pesquisador especializado em cinema que acaba de lançar o livro “Hollywood e o Mercado de Cinema no Brasil: Princípios de uma Hegemonia”. Butcher conta que embaixadas e consulados coletavam informações sobre economia, política e hábitos de consumo de cada país para repassar aos estúdios.

“O apoio sempre foi indireto, mas existe muita proximidade. Gustavo Dahl, o primeiro presidente da Agência Nacional do Cinema, a Ancine, dizia que ameaçar o cinema americano é o mesmo que declarar guerra aos Estados Unidos. Sempre vem um chumbo grosso”, diz Butcher. “É o que chamamos de Estado promocional. Ele não interfere na economia, mas fornece informações preciosas e investe em uma infraestrutura que beneficia essas empresas.”

O Brasil, que hoje ocupa a 12ª posição no ranking dos maiores mercados de cinema do mundo, tem preocupado os americanos, com a nova cota de tela, que obriga os cinemas a reservarem até 16% de suas sessões para filmes brasileiros, e a regulação do streaming. A proposta impõe às plataformas que no mínimo 5% de seus catálogos sejam formados por obras brasileiras e estabelece que 3% de sua receita bruta anual seja revertida ao financiamento da produção nacional.

As exigências do Brasil são pequenas se comparadas às da Europa, onde 30% do conteúdo precisa ser produzido no continente, ou às de países como a França, que obriga os serviços a investirem 25% de sua receita em produção local. Mas elas ainda desagradaram os executivos americanos, que têm expectativa de que, com sua política de soberania no comércio exterior, Trump seja um aliado de Hollywood na busca por uma regulação mais branda, segundo duas especialistas em política externa que trabalham com os estúdios e preferem não ser identificadas.

A preocupação com o streaming hoje é maior do que com o cinema porque o Brasil ocupa a sexta posição no ranking de consumo audiovisual doméstico, segundo a Omdia, empresa britânica referência em pesquisa de mercado de mídia e tecnologia. Muitas plataformas, aliás, têm no país a sua maior base de assinantes na América Latina, a exemplo da Netflix.

A expectativa de ter Trump como aliado também se estende a mercados como a China, que, embora seja totalmente fechada às plataformas de streaming, compõe a maior bilheteria do cinema fora dos Estados Unidos e tenta, ano após ano, ter produções próprias no topo das bilheterias, rivalizando com as americanas.

Política à parte, se o conservadorismo se impor sobre as histórias que Hollywood vai contar, como preveem os especialistas, haverá mais espaço para o cinema independente, sobretudo aquele feito fora dos Estados Unidos, de viés contestador.

É o que diz o produtor Rodrigo Teixeira, que vive entre São Paulo e Los Angeles e acumula em sua filmografia “Me Chame pelo seu Nome”, de Luca Guadagnino, que venceu um Oscar há seis anos, e “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. O filme do diretor brasileiro, sobre o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva por agentes da ditadura militar, levou Fernanda Torres a ser premiada como melhor atriz dramática no Globo de Ouro.

“O cinema internacional vai ser mais reconhecido, haja vista as premiações recentes. ‘Parasita’ e ‘Roma’, dois ganhadores recentes do Oscar de melhor filme, não são americanos”, diz Teixeira. “Nesta temporada, ‘A Substância’ é um projeto de uma diretora francesa, ‘Ainda Estou Aqui’ é brasileiro, ‘Emilia Pérez’ é francês e ‘O Brutalista’ foi filmado na Hungria. Mesmo os americanos estão saindo dos Estados Unidos. Fora de seu país, eles têm mais liberdade.”

noticia por : UOL

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